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Fidel no Chile de Allende

Alberto Aggio - Agosto 2006
 

¿Castro saboteó al gobierno de la Unidad Popular? Hace poco un entrevistador [...] me hizo esa pregunta directa y yo sigo eludiendo una respuesta afirmativa. Basicamente porque, desde hace algunas décadas, inicié el tránsito desde la simplicidad de la utopía a la complejidad de la Historia. Y esta me dice, primero, que no hay silogismos sencillos para las situaciones complejas. Segundo, que los iluminados siempre tratan de arrastrar a sus amigos, aunque sea a la muerte, y, tercero, que los iluminados no pueden tener amigos, sólo seguidores (RODRÍGUEZ ELIZONDO, 2001).

O que pretendemos neste artigo é estabelecer alguns elementos de reflexão a respeito das estratégias políticas que estiveram envolvidas na visita de Fidel Castro ao Chile, em novembro de 1971, período em que governava o país o socialista Salvador Allende, presidente eleito pela Unidade Popular (UP). Fidel era, aparentemente e aos olhos da comunidade internacional, o mais estreito aliado de Allende no continente. Depois do reatamento de relações diplomáticas entre Chile e Cuba, obedecendo à política externa de "pragmatismo de princípios", defendida por Allende, Fidel Castro foi convidado pelo governo da UP para uma visita oficial de 10 dias. Entretanto, o primeiro-ministro cubano – já àquela época chamado de Comandante Fidel – permaneceria 24 dias no país, regressando a Cuba no dia 4 de dezembro, depois de rápidas escalas de poucas horas no Peru e no Equador.

Em seu périplo pelo Chile, percorrendo-o incansavelmente de norte a sul, Castro visitou mais de uma dezena de cidades e localidades, fez comícios para multidões em espaços públicos abertos e fechados, proferiu conferências em diversas instituições – uma delas, na sede da Cepal –, estabeleceu conversações com representantes de inúmeras organizações da sociedade civil e do aparelho estatal, especialmente de entidades sindicais e femininas, participou de ardentes debates com estudantes universitários e concedeu incontáveis entrevistas a órgãos de imprensa, nacionais e estrangeiros.

Antes de sua chegada a Santiago, já eram intensos os rumores a respeito de sua visita. A despeito de todo o burburinho que havia sido gerado, especialmente pela imprensa, o então ministro das Relações Exteriores, Clodomiro Almeyda, anunciou protocolarmente a visita num comunicado oficial intencionalmente lacônico – supostamente por questões de segurança. De fato, a intensa movimentação de agentes de segurança para a visita de Fidel, inclusive com a presença de agentes especiais cubanos – o que era altamente compreensível –, parece ter sido o primeiro dado que chamaria a atenção do público chileno, acostumado a um aparato de segurança relativamente escasso, quando não nulo, para a visita de Chefes de Estado. Pode-se anotar aqui, apenas a título de informação complementar – ainda que, de toda forma, relevante –, que as visitas anteriores, quer a do presidente norte-americano Eisenhower, em março de 1960, quer a do então futuro presidente argentino Onganía, em 1965, haviam gerado compreensivelmente uma atenção especial em termos de segurança, mas certamente em proporção bem menor que a de Castro. Por outro lado, a quantidade de pessoas que foi recepcionar Fidel Castro nas ruas de Santiago no dia 10 de novembro de 1971 (1 milhão de pessoas, de acordo com a imprensa de esquerda), bem como a simpática, calorosa e até mesmo espontânea recepção que lhe brindou o povo chileno somente podem ser comparadas às visitas internacionais anteriores de Charles De Gaulle, em 1964, e a da Rainha Isabel da Inglaterra, em 1969. De toda forma, independentemente de números, Fidel Castro recebeu, em sua chegada, uma aclamação entusiástica da multidão perfilada ao longo das calçadas de Santiago por onde passou o cortejo encabeçado pelo ilustre visitante, ladeado pelo então presidente Salvador Allende.

Não se pode dizer, por todas as circunstâncias envolvidas, que a visita de Fidel Castro ao Chile ocorreu dentro da normalidade, obedecendo aos parâmetros clássicos da vida e das relações diplomáticas. Castro era um convidado do governo chileno, mas desde o início instituiu um teatro de operações e um discurso nada usual para o terreno diplomático: não estabeleceu, de início, um prazo determinado para sua viagem (que, como afirmamos, acabou sendo de 24 e não de 10 dias, como oficialmente se previa) e se apresentou como um "amigo" e, por fim, um "protagonista" do processo chileno, afirmando que "compartilhava aliados e inimigos no plano interno". Em certo sentido, isso acabou por estabelecer uma situação bastante delicada nas relações diplomáticas entre Chile e Cuba. A cada intervenção vocalizada pelo Comandante, o governo se via forçado a assumir também um posicionamento que respondesse às interpelações feitas, problematizando seu status representativo de toda a nação. Com Fidel no Chile, introduzia-se um elemento de questionamento do sistema político chileno que não existia antes, bem como do processo conduzido pela Unidade Popular e por Allende. Por ter durado muito mais do que o previsto e por ter gerado as tensões e problemas políticos e diplomáticos que gerou, a visita de Castro é contabilizada como a estadia mais extensa de um político estrangeiro da história do Chile, e provavelmente a mais controvertida, além de ser considerada a que mais impacto causou na conjuntura do país no momento em que ocorreu [1].

A maior parte dos observadores reconhece que o Chile passou a ser um país bastante diferente depois da presença de Castro. A sua visita pode, de fato, ser considerada como um ponto de inflexão no desenvolvimento dos acontecimentos que iriam marcar e definir a sorte da experiência chilena. É claro que não corresponde a uma análise correta atribuir à visita em si a ruptura do equilíbrio que anteriormente havia caracterizado a vida institucional chilena. Contudo, há que se reconhecer que a série de intervenções feitas por Fidel ao longo da viagem acabou por produzir ou acentuar um ambiente de confrontação entre esquerda e direita, que impediria ou impossibilitaria a partir daquele momento qualquer convivência democrática. Uma outra conseqüência direta da visita – de repercussões gravíssimas – foi a explicitação das diferenças no seio da Unidade Popular. Como notou o historiador chileno J. Fermandois, "com suas palavras e atitudes [Castro] punha expressamente em julgamento o sistema político chileno, atacava suas instituições e representantes e contribuía para acirrar os ânimos. [...] Castro passou a se comportar como mais um ator político da vida nacional" (FERMANDOIS, 1985, p. 238). É possível que sem a visita de Fidel as coisas tivessem se desenrolado da mesma maneira, mas é inegável que a visita produziu um efeito nesse sentido ou acentuou essa tendência de confrontação e de questionamento da solidez do sistema político chileno [2].

Evidentemente que a vinda de Fidel Castro havia sido pensada naquele momento como mais uma forma de fortalecer o governo da Unidade Popular, depois de este ter alcançado mais de 50% dos votos dos eleitores chilenos nas eleições municipais de abril de 1971. Isto significava que a Unidade Popular havia ultrapassado a barreira de um terço dos votos que havia possibilitado a primeira maioria em 1970. Mais do que isso, por todas as avaliações, pode-se dizer que 1971 foi o "ano de graça" da Unidade Popular, no qual tudo parecia indicar um êxito sem precedentes de um governo de esquerda na América Latina (AGGIO, 2002).

Inflamado e inebriante, Fidel manteve-se na ofensiva nos primeiros 15 dias da visita, e a sua imagem heróica – identificada, contudo, à de um homem comum e "igual a todos" – conseguiu cativar profundamente seu público, em contraste com a imagem do dirigente político tradicional tão identificado à imagem dos políticos chilenos. Naqueles dias, efetivamente, o Chile esteve em contato com um estilo político bastante diferente daquele que estava acostumado. Fidel aparecia diante dos chilenos como uma figura colossal, magnetizadora, capaz de estabelecer um contato direto com as massas e um diálogo franco e aberto com a sua platéia, demonstrando uma enorme capacidade de falar de inúmeros assuntos e de parecer estar interessado apenas e exclusivamente em saudar e apoiar o êxito dos chilenos. Efetivamente, pela primeira vez desde 1920, ou seja, desde a célere ascensão na vida política chilena da figura, também inflamada e eletrizante, de Arturo Alessandri, Fidel recolocaria o público chileno novamente diante da fleuma e da astúcia de um líder carismático, de traços pessoais e de personalidade extremamente vitalizados, fisicamente resistente, mentalmente alerta e profundamente informado. Jovem, belo, atraente, viril, incansável, com o odor afrodisíaco que emana do poder – como chegou-se a afirmar à época –, com a fala afinada e penetrante, a seu lado Salvador Allende aparecia um "tanto descolorido e opaco", como se fosse o "tio do herói" e, por conseguinte, "demasiado sensato, demasiado realista"; o contraste flagrante entre os dois líderes era por demais evidente: Allende, o "trabalhador da República em pálido contraste com o verdadeiro Messias" (ROJAS, 1998, p. 100).

No início, portanto, nada de muito problemático ou extraordinário parecia acontecer, e o apoio e solidariedade de Castro ao "caminho chileno" era aparentemente crível. Contudo, depois de três semanas, Fidel havia deixado de ser uma novidade, e sua magia e sedução, anteriormente demonstradas e absolutamente cativantes, haviam se tornado, sobretudo, elementos de rotina e cansaço. Isso coincidiu com a retomada da iniciativa política por parte da direita e, desta vez, de maneira mais radicalizada, por meio da ocupação das ruas. Em primeiro de dezembro, dias antes de finalizar sua visita, Castro viu explodir uma ação política sem precedentes da oposição. Essa manifestação, que se autodesignou como a passeata das "panelas vazias" e que acabou se tornando a primeira batalha campal entre militantes de esquerda e de direita no período, resultou em mais de 100 feridos e na decretação do estado de emergência em Santiago. Como conseqüência dessa confrontação, o ministro do Interior, José Toha, seria, mais tarde, destituído pelo Congresso, por meio de um processo de impeachment, permitido pela Constituição.

O discurso castrista no Chile

De um ponto de vista estritamente formal, pode-se dizer que o discurso de Fidel no Chile foi intencionalmente pedagógico. Além de gradativamente se perfilar como um ator político interno, seu discurso demonstrava a intenção clara de ensinar, de aconselhar a respeito dos problemas que se colocam em todas as revoluções, em especial nas revoluções antiimperialistas que, a seu juízo, deveriam ser o eixo central das revoluções na América Latina. Nesse sentido, o discurso castrista no Chile não se estrutura nem aparece como o discurso de um dirigente político vocacionado à administração e ao ato de governo. Ele se esforça por aparecer como uma ferramenta a ser utilizada do ponto de vista mobilizador; é, enfim, um discurso voltado para a afirmação da consciência moral e, por essa razão, necessita da "utilização de uma linguagem simples, familiar, clara, gráfica, quase coloquial, na qual complexas decisões são explicadas de maneira facilmente inteligível para um público médio, no interior de uma atmosfera suscetível de criar uma grande simpatia entre quem fala e seu auditório" (FERMANDOIS, 1985, p. 218). A formalização da retórica discursiva de Fidel, baseada na estrutura de perguntas e respostas, fascinava e alcançava um alto poder persuasivo.

Entretanto, de um ponto de vista político e ideológico, o discurso de Fidel no Chile tinha diversos endereços, cada um deles motivado por uma razão específica. Combinado com o aspecto anterior, no qual examinamos as características formais do discurso de Fidel, a dimensão política e ideológica do seu discurso define o caráter e as precisas intenções da visita de Fidel Castro ao Chile.

A primeira coisa a se observar, como já dissemos anteriormente, é o fato de que a visita durou muito mais do que deveria, e isso, hoje é sabido, desgostou muito a Allende. A cada passo, ela foi evidenciando que Fidel Castro havia vindo para se encontrar com o seu público, enfim, para entrar em comunhão com a esquerda chilena. Seguindo estritamente essa lógica, Fidel confessaria: "Falei com todos os chilenos, mas não com os reacionários, com os oligarcas e com os fascistas" (FERMANDOIS, 1985, p. 233). Fidel não demonstrara estar disposto a dialogar construtivamente para além do campo da esquerda. É visível que, da sua parte, não houve nenhuma disposição em travar um mínimo de contato – nem mesmo diplomaticamente – com o amplo espectro da política chilena. E esse é, sem dúvida, um aspecto definidor no discurso de Castro: o estabelecimento de uma rígida fronteira ideológica entre campos antagônicos, visto que se tratava de reconhecer, do seu ponto de vista, os amigos e os inimigos da revolução em curso no Chile. Assim, muito rapidamente, Fidel Castro tratou de definir que havia no Chile um campo político que se deveria definir como "inimigo" da revolução chilena e ele os rotulou de "fascistas". De fato, Fidel passou quase toda a sua estadia no Chile tratando a oposição a Allende como sendo de caráter fascista e em seu discurso, marcado por antagonismos, esses setores de oposição se configurariam como o outro, isto é, o adversário implacável que somente se conseguiria vencer mostrando-se mais implacável do que ele. Como um ator político interno ao processo chileno, Fidel define que, no Chile, o inimigo é o fascismo; e o "fascista" atua para matar e, por isso, os revolucionários deveriam se preparar para o enfrentamento inevitável com esse inimigo no seu próprio terreno: o terreno das armas (FERMANDOIS, 1985, p. 213).

Do nosso ponto de vista, gostaríamos de registrar nessa altura que o Chile, ao final de 1971 ainda não apresentava fraturas insanáveis no seu sistema político que impedissem a convivência democrática. Pelo menos até aquele momento, os três terços em que se dispunham as forças políticas ainda se mantinham em vigência, tanto em suas identidades quanto em seus posicionamentos políticos. A despeito dos conflitos políticos que certamente existiam, não se pode dizer, de forma alguma, que as possibilidades de negociação já estavam canceladas e que fora da esquerda havia somente ações fascistas e terroristas contra o governo (AGGIO, 2002).

Dessa maneira, não é descabido concluir que Fidel atuou, de fato, como um componente a favor da radicalização e da polarização durante a visita que fez ao Chile. Com Fidel, as tensões que já existiam se acentuaram, complicando a convivência política entre as diferentes forças que representavam a sociedade chilena. Não havendo possibilidade de desautorizar as iniciativas e intervenções de Fidel, o governo ficava cada vez mais refém do seu visitante, enquanto se aprofundava o fosso entre as forças de esquerda e as de oposição. A visita de Fidel, portanto, atuou no sentido de favorecer o desaparecimento de qualquer "vontade negociadora" entre as forças políticas, com o conseqüente e gradual estabelecimento de uma "vontade de extermínio" que mais tarde acabaria por se impor (FERMANDOIS, 1985).

A via chilena e o modelo cubano

Durante a visita de Fidel o que esteve em questão de maneira evidente foi a comparação entre a via chilena ao socialismo e o modelo cubano, considerado paradigmático para a América Latina. As atitudes e os discursos de Fidel Castro durante a viagem, apesar de nunca se expressarem explicitamente como antagônicos ao caminho adotado por Allende nem mesmo assumirem o desejo explícito de redirecionar a via chilena, evidenciaram fortemente uma estratégia nesse sentido, bem como uma disposição hegemônica do líder cubano.

Anteriormente, Castro já havia se pronunciado a respeito das práticas da esquerda chilena e de suas intenções de conquistar o poder e construir o socialismo por meio da democracia. No convulsionado e dramático ambiente em que se desenvolveu a primeira e também última conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (Olas), em agosto de 1967, Fidel Castro criticou abertamente os planos da esquerda chilena. Mais do que isso, Castro chamou de "mentirosos" aqueles que se mostravam favoráveis à estratégia da via pacífica no continente. No discurso de encerramento da conferência, Fidel lançou um ataque fulminante: "Os que afirmam, em qualquer lugar da América Latina, que vão chegar pacificamente ao poder, estão enganando as massas" (RODRÍGUES ELIZONDO, 1995. p. 229). Em 1970, contudo, em mais uma das reviravoltas comuns realizadas por Fidel, mas sem admitir que havia se equivocado, ele reconhece a possibilidade de vitória da esquerda chilena nas eleições e, posteriormente, assume como um dado a excepcionalidade do caso chileno. Ficava cada vez mais claro que Fidel reconhecia o perigo que representava para sua hegemonia sobre a esquerda continental um possível êxito no Chile de um paradigma distinto do seu, isto é, da cristalizada imagem que se havia construído sobre a Revolução Cubana de 1959 e sobre a luta de guerrilheira modelada por Che Guevara, mesmo depois do fracasso e da sua morte em outubro de 1967.

O reconhecimento de que as condições e as circunstâncias gerais nas quais se efetivavam a luta política revolucionária em Cuba e no Chile eram distintas era algo que se assumia abertamente. Para alguns autores, a chamada via chilena ao socialismo era, precisamente, a antítese do caminho cubano e poderia ser definida, em termos didaticamente negativos, da seguinte maneira: ela não será igual aos processos revolucionários anteriores uma vez que não se utiliza da violência, não rompe com a ordem política existente, não se fundamenta numa forma autoritária de governo e não estabelece o domínio de um partido único (GARRETÓN Y MOULIAN, 1983; anexo final; grifos nossos; também AGGIO, 2002).

Em 1971, Allende concede uma longa entrevista a Regis Debray – à época um ferrenho partidário do modelo cubano e difusor da estratégia foquista para a revolução na América Latina – na qual a consciência da distintividade e do desafio da via chilena ao socialismo é assumida integralmente. Diz Allende:

A lição é que cada povo tem sua própria realidade. Não há receitas. O nosso caso, por exemplo, abre perspectivas, abre caminhos. Chegamos ao poder pelo caminho eleitoral. Aparentemente, pode-se dizer que somos reformistas, mas temos tomado medidas que implicam que queremos fazer a revolução, vale dizer, transformar nossa sociedade, vale dizer, construir o socialismo (DEBRAY, 1971).

Admitia-se, portanto, em linguagem da época, que no Chile as condições eram específicas e sinteticamente estariam assim resumidas: um Estado burguês com separação de poderes e um regime presidencialista, que por sua vez contava com um executivo forte, alguns mecanismos legítimos de arbitragem, como o sistema eleitoral, e uma certa elasticidade legal para aceitar as conquistas dos trabalhadores. Além disso, o Chile havia conquistado um desenvolvimento democrático-burguês que havia criado condições específicas para a organização sindical e política da classe operária e das massas populares, algo que não ocorrido em Cuba. Por fim, o triunfo da UP e a posse de Allende eram atribuídos ao caráter constitucionalista das Forças Armadas chilenas.

Numa entrevista radiofônica conduzida pelo jornalista Augusto Olivares, em dezembro de 1971, Allende e Fidel, frente a frente, constroem, à medida que vão respondendo às perguntas, um esquema comparativo que se pode inferir conforme o quadro abaixo:

 

SALVADOR ALLENDE

FIDEL CASTRO

Crescimento da esquerda dentro da legalidade

Luta armada guerrilheira

Classe operária organizada política e sindicalmente

Impossibilidade de organizar politicamente a classe operária cubana

Obstáculos para o Chile: aqueles referentes ao sistema parlamentar

Esses obstáculos não existem em Cuba já que não existe pluralidade. O obstáculo é, assim, o imperialismo.

Fonte: LUNA, 1988

Efetivamente, não deveria ser do agrado de Fidel a explicitação que fazia Allende a respeito do fato de que para ele não se deveria falar de "receitas" para realizar revoluções. A sagacidade de Fidel permitiu-lhe, contudo, uma saída retórica frente ao problema que o fez falar da noção de revolução em um sentido extremamente alargado, como uma espécie de "vocação". No seu discurso, a revolução apareceria, assim, como o verdadeiro sentido da vida:

Nós ainda estamos fazendo revolução. E creio que vamos ter que estar fazendo por 50 ou 100 anos. E creio que a revolução seja eterna. A única coisa eterna é a revolução porque as sociedades humanas sempre terão que lutar para melhorar e progredir. E, quando as sociedades humanas tenham alcançado um determinado nível, será a luta pelo prolongamento da vida, a luta contra a morte [...]. Um dia viveremos para revolucionar a sociedade humana. E quando a sociedade humana for revolucionada, [viveremos para] aperfeiçoá-la; e, quando tiver sido aperfeiçoada, continuar aperfeiçoando, e revolucionar a natureza (FERMANDOIS, 1985, p. 221).

Embora reconhecendo as diferenças existentes entre Cuba e Chile, Fidel não entendia como viável um novo caminho revolucionário. Apesar de todas as declarações de que não iria se intrometer nos assuntos internos do Chile, Fidel não fez outra coisa. Em relação à esquerda chilena, pediu unidade entre suas forças e disciplina e dedicação aos trabalhadores, estudantes, mulheres, etc. Advertiu a respeito da "sabedoria do inimigo" e asseverou a respeito das diversas "debilidades" do processo chileno. Na noite de primeiro de dezembro de 1971, quando eclodiu a passeata das "panelas vazias" e Allende decretou estado de emergência, Castro opinou que essa era uma medida muito branda para, segundo ele, um fato tão grave. E pediu mano dura ao presidente, ao que Allende o respondeu por meio de um emissário: "Diga a Fidel, com suavidade, que aqui no Chile quem resolve essas coisas sou eu, de acordo com meu leal saber e entender" (ROJAS, 1998, p. 103).

O coroamento de uma insólita visita

Durante a viagem, Fidel estabeleceu juízos definitivos sobre o que ele via no Chile e sobre a principal liderança daquela experiência. Fidel expressamente ninguneou Allende no Estádio Nacional, diante de milhares de pessoas, ao afirmar que aquele ato de massas no qual discursava não era nada comparado com aqueles que ele podia convocar em Havana, agregando ainda que o processo chileno havia permitido que os fascistas estivessem nas ruas (RODRÍGUES ELIZONDO, 2001). Para o "líder máximo", no Chile não ocorria, ainda, uma revolução e sim um "processo revolucionário". Na Universidade de Concepción, onde a presença mirista era predominante, Castro sentenciou:

[...] se perguntassem a mim o que está ocorrendo no Chile, sinceramente, eu lhes diria que no Chile está ocorrendo um processo revolucionário. [...] Um processo não é ainda uma revolução, um processo é um caminho; um processo é uma fase que se inicia. E, se a tratarmos da forma conceitual mais pura, devemos caracterizá-la como uma fase revolucionária que se inicia" (CUBA-CHILE, 1972, p. 265).

Estava claro, portanto, que aos olhos de Fidel, o processo chileno deveria "avançar" a partir da fase em que estava e que o "ritmo" revolucionário poderia (e, segundo ele, deveria) ser alterado. O problema não era ter chegado ao governo pela via eleitoral, era saber como se poderia superar essa origem, sair desse caminho, isto é, como o processo revolucionário chileno iria, de acordo com a avaliação de Fidel, consumar-se numa revolução.

Definitivamente, a autenticidade da "revolução" no Chile estava problematizada. Por essa razão, no discurso final, Fidel qualificaria o processo chileno como "insólito". Nas suas palavras:

[...] no Chile está acontecendo um processo único. Algo mais que único: insólito! insólito! É o processo de uma mudança. É um processo revolucionário, no qual os revolucionários tratam de levar adiante as mudanças pacificamente. Um processo único, praticamente o primeiro na história da humanidade [...], em que se quer levar a cabo o processo revolucionário pelos cânones legais e constitucionais, mediante as próprias leis estabelecidas pela sociedade ou pelo sistema reacionário, mediante o mesmo mecanismo, mediante as mesmas formas que os exploradores criaram para manter sua dominação de classe" (CUBA-CHILE, 1972, p. 475; FARIAS, 2000, p. 1.367).

Nada mais explícito como declaração condenatória à via chilena ao socialismo. A caracterização da democracia chilena como "sistema reacionário" é também algo profundamente agressivo a uma esquerda que procurava se fiar nele. Fidel foi, dessa forma, absolutamente conclusivo, quando afirmou no final da visita, em seu último discurso:

Ninguém pense que viemos aprender algumas das coisas que nos aconselhavam alguns libeluchos ou alguns sisudos defensores das teorias políticas reacionárias, que achavam bom que viéssemos para aprender sobre eleições, sobre parlamento, sobre liberdade de imprensa, etc. [...] Não viemos aqui para aprender coisas caducas da história [...], já aprendemos bastante sobre as liberdades burguesas e capitalistas" (CUBA-CHILE, 1972, p. 474; FARIAS, 2000, p. 1.365).

Fidel colocou abertamente em dúvida as afirmações dos chilenos quanto à sua capacidade própria de lidar com um processo da natureza da via chilena ao socialismo. Nessa direção, Castro manifestou abertamente as suas desconfianças: "Não estamos completamente seguros de que, neste singular processo, o povo chileno tenha conseguido aprender mais rapidamente que os reacionários". E, depois de apontar as debilidades da Unidade Popular, que, segundo ele, estava perdendo a ofensiva para os "fascistas" na batalha ideológica, na luta de massas e na mobilização de rua, Fidel sentenciou que voltava a Cuba mais "revolucionário", mais "radical" e mais "extremista" do que quando havia vindo (FARIAS, 2000, p. 1.378).

Nesse sentido, pode-se dizer que Fidel atuou no Chile com o intuito de "radicalizar" o processo chileno, possivelmente para fazer do Chile uma base de operações da guerrilha latino-americana, patrocinada por Cuba. Estrategicamente, nessa visita, esse era seu objetivo máximo [3]. Como percebeu que não o conquistaria ou que seria extremamente difícil que isso se viabilizasse, estabeleceu como elemento tático mediador da sua estratégia a "invenção" de uma contra-revolução. Dessa forma, como não conseguiu fazer uma revolução armada no Chile, Fidel construiu – antes que a conjuntura o revelasse – o pânico da contra-revolução. Por essa razão, sua viagem tardou tanto tempo. Tudo indica que Castro não deixou o Chile antes de estar convencido de que havia minado os alicerces da estratégia política que havia dado a vitória a Salvador Allende.

É sintomático que um despacho da CIA a Washington, de 2 de dezembro de 1971, tenha revelado recomendações sigilosas de Castro aos dirigentes da UP, segundo as quais existiam pouquíssimas "possibilidades de se construir um Estado marxista no Chile sem o uso da violência". E, em relação à repressão à passeata das "panelas vazias" do dia anterior, Castro havia aconselhado no sentido de que "a UP não deveria se preocupar com a possibilidade de mortos e feridos, já que a confrontação é o verdadeiro caminho para a revolução" (ORTEGA, 2001).

Ao regressar a Cuba, Castro deixava atrás de si um Chile já distinto daquele que ele havia encontrado 24 dias antes: a radicalização que vocalizara naquela insólita visita já havia encontrado eco e, por fim, já havia se estabelecido como uma polarização tendente à catástrofe. O ano de 1971, como dissemos, o melhor do governo da UP, terminava com presságios nada animadores para aquilo que se imaginava como uma via democrática ao socialismo. A partir daquela insólita visita, as palavras ‘contra-revolução’, ‘reação’ e ‘fascismo’ tornaram-se absolutamente recorrentes, como uma profecia que se auto-cumpriria não muito tempo depois.

Imediatamente após o golpe de 11 de setembro de 1973, mesmo sabendo, pelos exilados chilenos que estiveram com Allende até o último minuto, que o presidente chileno havia se suicidado, o líder cubano procurou construir, num discurso para milhares de pessoas, em Havana, a imagem da "morte guerrilheira" de Salvador Allende, fabulando um hipotético e último confronto entre Allende e as forças militares que ingressavam no palácio La Moneda depois de intenso bombardeio. Valorizando Allende com a máxima "assim morrem os homens!", afirmava conclusivamente: "Os chilenos agora sabem que não existe outro caminho".

O desvelamento dos acontecimentos dessa insólita visita aponta necessariamente para o questionamento de um dos mitos mais fortes do século XX latino-americano. Utilizando-nos mais uma vez do potente espírito crítico de José Rodríguez Elizondo (2001), diríamos que, mesmo que seja em termos alegóricos, é facultado afirmar que talvez não seja mais possível a Fidel, para justificar suas decisões e suas ações, brandir com a brochura A história me absolverá!

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Alberto Aggio é professor livre-docente da Unesp/Franca, autor e organizador de Gramsci: a vitalidade de um pensamento (1998) e Pensar o século XX: problemas políticos e história nacional na América Latina (2003). Este texto foi publicado na revista História. São Paulo: Unesp, 22 (2): 151-66, 2003.

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Notas

[1] Apenas um exemplo. Fidel afirmou, no Chile, que nas eleições uruguaias era preciso votar na Frente Ampla. Depois da derrota do general Seregni, que liderava aquela coalizão de esquerda, Fidel voltou à carga: ao Uruguai somente restava a luta armada! (FERMANDOIS, 1985, p.240). Isso criou problemas para a diplomacia chilena e mereceu explicações do governo chileno a Montevidéu, além de munição ao discurso da oposição a Allende.

[2] Não é nossa intenção realizarmos aqui uma discussão sobre os acontecimentos que marcaram o período de governo de Salvador Allende nem tampouco um debate a respeito da historiografia a respeito desse período. Para ambas as dimensões, remetemos a AGGIO (2002). A literatura a respeito da visita de Fidel aqui utilizada deriva tanto de trabalhos acadêmicos que se transformaram em livros (FERMANDOIS, 1985), mesmo que estes tenham uma temática mais ampla do que a viagem de Fidel ao Chile, como também de livros que, tratando de outros temas e dimensões presentes na experiência chilena, dedicaram algum espaço à visita de Fidel por entenderam aquele fato como importante e digno de relevância; em ambos os casos eles aparecem nas referências bibliográficas desse artigo. Em relação às fontes documentais produzidas no período, utilizamos aqui dois livros de compilação de documentos (CUBA-CHILE, 1972, e FARIAS, 2000), e, mesmo que alguma citação baseada nos documentos apareça referida aos livros mencionados na bibliografia arrolada ao final do artigo, todas elas foram cotejadas a partir das compilações acima mencionadas.

[3] Mais tarde, em 9 de janeiro de 1984, numa entrevista a Newsweek, Fidel esclareceria que a estratégia guerrilheira na América Latina era uma das muitas variáveis de defesa do regime revolucionário cubano, ao contrário do que se havia afirmado na década de 1960 no sentido de que a revolução na América Latina "caía de madura". Nas palavras de Fidel: "Nem ao menos oculto o fato de que, quando um grupo de países latino-americanos, sob a direção e inspiração de Washington, não apenas buscou isolar Cuba politicamente, mas a bloqueou e patrocinou ações contra-revolucionárias [...], nós respondemos, num ato de legítima defesa, ajudando a todos aqueles que queriam combater contra esses governos" (apud RODRIGUEZ ELIZONDO: 2001).

Bibliografia

AGGIO, A. Democracia e socialismo: a experiência chilena. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2002, p. 184.

CUBA-CHILE – Encuentro simbólico entre dos procesos históricos. La Habana, 1972, p. 603.

DEBRAY, R. Conversación con Allende. México: Siglo XXI, 1971, p. 320.

FARIAS, V. (Org.). La Izquierda Chilena (1969-1973) – documentos para el estudio de su linea estratégica, Tomo 3. Santiago de Chile: Centro de Estudios Públicos, 2000, p. 1.867.

FERMANDOIS, J. Chile y el mundo, 1970-1973 – la política exterior del gobierno de la Unidad Popular y el sistema internacional. Santiago: Ediciones Universidad Católica de Chile, 1985, p. 444.

GARRETÓN, M. A. y MOULIAN, T. La Unidad Popular y el conflicto político en Chile. Santiago: Editorial Minga, 1983, p. 168 (anexo final).

LUNA, E. "Allende y Castro: una entrevista para la historia de América Latina". In: ALCAZAR, J. y TABANERA, N. (Coords.). Estudios y materiales para la história de América Latina, 1955-1990. Valencia: Tirant lo Blanch, 1998, p. 159-78.

ORTEGA, J. "El viaje que saboteó a Allende". La Tercera. Santiago, 28 de octubre de 2001, p. 5 (Cuaderno Reportajes).

RODRÍGUEZ ELIZONDO, J. "El invierno del Messías". La Tercera. Santiago, 28 de octubre de 2001, p. 9 (Cuaderno Reportajes).

RODRIGUEZ ELIZONDO, J. Crisis y renovación de las izquierdas – de la revolución cubana a Chiapas, pasando por "el caso chileno". Santiago: Andres Bello, 1995, p. 407.

ROJAS, A. et al. Salvador Allende: una época en blanco y negro. Buenos Aires: Aguilar/El País, 1998, p. 235.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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