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Uma homenagem a Ivan Ribeiro

Raimundo Santos - Outubro 2006
 

Em 8 de setembro de 1987, morreu Ivan de Otero Ribeiro no acidente de avião que vitimou Marcos Freire, ministro da Reforma Agrária da Nova República, e membros da sua equipe, da qual Ribeiro fazia parte. Ali se encerrava a trajetória do último intelectual agrarista do PCB, partido ao qual ele pertenceu por muitos anos. Interrompeu-se o labor de um jovem publicista que também deixava pesquisas incompletas sobre o tema agrário e rural.

Na sua última fase militante, Ivan Ribeiro integrou uma corrente pecebista que, ainda no tempo dos exílios, desde 1975, procuraria uma convergência entre o sentido da tática de frente democrática - arduamente defendida pelo PCB, de construção progressiva e capaz de resistir, isolar e, afinal, derrotar a ditadura - com o renovamento do marxismo político brasileiro, tentado por alguns jovens intelectuais naqueles anos eurocomunistas da segunda metade da década de 1970. Como se sabe, derrotada essa tendência no interior do PCB, no VII Congresso de 1982-1983, alguns dos seus intelectuais lançaram a revista Presença, que circularia por todo o decênio subseqüente.

Essa militância pode ser aferida no registro público dos artigos publicados por Ivan Ribeiro no Jornal da República, que circulou em São Paulo durante o ano de 1979, no qual Leandro Konder escrevia e para onde levou companheiros seus daquele campo intelectual pecebista. Há textos de Ivan Ribeiro no semanário comunista Voz da Unidade, publicados em 1981, e, depois, na revista Presença, da qual, aliás, ele próprio era um dos principais animadores, junto com Luiz Werneck Vianna, Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder.

Ivan Ribeiro também tem uma passagem pela universidade brasileira. Primeiramente, juntou-se ao grupo de pesquisadores que se havia reunido, em meados dos anos 1970, em torno do tema agrário no centro acadêmico da FGV conhecido como a Pós-Graduação do Horto Florestal ou CPDA. Ele também esteve na transferência do mesmo CPDA para a Universidade Rural, em 1984, onde, juntamente com outros professores, militou na política universitária, ativando - inclusive como candidato - as movimentações das primeiras eleições diretas para Reitor.

Ivan Ribeiro emerge naquele tempo de renovação do PCB como publicista de partido especializado no estudo do mundo rural. Quase vinte anos depois da sua morte, sua evocação resulta oportuna. O reformismo agrário brasileiro, que se afirmava na época de Ivan, avançou muito nesses últimos decênios. Nesse tempo, também conhecemos um novo agrarismo dos sem-terra, que concorreu, junto com a atuação estratégica da Contag, para a ampliação da área reformada da agricultura, ao mesmo tempo que ensejou tensões na institucionalidade democrática, sendo a mais emblemática delas a invasão violenta do Congresso Nacional ocorrida meses atrás.

Vivemos dias de grave desencontro entre a democratização cada vez maior da sociedade e a descrença na democracia representativa e na própria política; descrédito que cresceu assustadoramente no governo Lula, quando a corrupção se banalizou, inclusive passando a ser usada como forma de luta. A meu ver, esse momento adverso realça certos traços na lembrança de Ivan Ribeiro, particularmente a sua ensaística sobre o tema rural e a inserção na tentativa de renovamento da cultura política do seu PCB; este, um partido de tradição acrisolada no mundo da política e da valorização da democracia representativa, matriz à qual Ivan Ribeiro se manteve intelectualmente ligado até os seus últimos anos de vida.

O campo pecebista de Ivan Ribeiro

Ao reler ultimamente textos do campo intelectual Caio Prado Jr.-PCB, perquirimos em sua matriz oficial elementos discursivos que também teriam estimulado os comunistas a inaugurar no país uma atuação agrária de novo tipo. Um agrarismo que emergiu no PCB no começo da década de 1950, adquiriu forma definitiva nos anos 1958-1960 e protagonizou a criação, entre nós, de uma rede de organizações sindicais estáveis espalhadas pelos municípios brasileiros. Até bem pouco tempo atrás, buscávamos o perfil desse agrarismo na ensaística de Caio Prado Jr. E isto não só pelo fato de o historiador considerar o sindicalismo como espaço estratégico para a renovação do mundo rural, mas também de possuir teoria de Brasil capaz de substantivar o caminho das reformas estruturais progressivas, por onde, desde meados dos anos 1950, enveredara o seu Partido Comunista, notadamente após a denúncia dos crimes de Stalin [1].

Em 1951, os comunistas começaram a deixar para trás o campesinismo revolucionário dos seus Manifestos de 1948 e 1950, mudando sua práxis rural, o que se tornaria visível em 1954, quando reuniram sindicatos e outras organizações na Ultab (União dos Lavradores e Trabalhadores da Agricultura Brasileira). O novo padrão se consolidou em 1963, ocasião em que animaram a fundação de uma central agrária, a Contag. Esse modelo de ação agrária já aparece na Declaração do Comitê Central de março de 1958, texto com o qual o núcleo dirigente que emergira no PCB da crise do stalinismo anunciou a "nova política" do reformismo gradualista de frente única "permanente". Junto com essa virada na política geral, consagrada no V Congresso do PCB (1960), a reorientação agrária também vai se afirmar como um novo agrarismo, que poderíamos chamar de sindical-camponês.

No entanto, atribuíamos a "nova política" de 1958 ao faro político e ao pragmatismo responsável dos comunistas e não víamos - a não ser a dissertação caiopradiana, percorrendo a trajetória do PCB como um alter ego pelo menos desde 1947 (a primeira data do IV Congresso, que, adiado, realizar-se-ia em 1954) - traço discursivo relevante, além do recurso ao marxismo-leninismo oficial, próprio da quase totalidade dos partidos comunistas. Não divisávamos elaboração que fundamentasse aquele redirecionamento no sentido de fundar sindicatos rurais com vistas a alcançar a "massa mais numerosa da nação", como dizia a Declaração de Março, usando a expressão de O Dezoito Brumário; uma massa numerosa cujo "movimento camponês" - avaliava o mesmo documento de 1958 - era "bastante atrasado, sendo baixíssimo o seu nível de organização".

Dois anos depois, as Teses do V Congresso retomam esse registro, trazendo da experiência de "atuar nos sindicatos" a formulação de uma mediação sociopolítica: "A fim de impulsionar a organização das massas no campo, é necessário atribuir atenção primordial aos assalariados e semi-assalariados agrícolas. Em virtude da sua condição social de proletários ou semiproletários, como também do seu grau de concentração, os assalariados rurais são mais suscetíveis de organizarem-se em sindicatos que podem constituir as bases iniciais para a mobilização das massas camponesas" (PCB, 1960: 72-3).

Ao comparar esse campo comunista com a matriz mais contemporânea que ensejaria uma interpelação camponesa alternativa [2], voltamos a perquirir as clivagens que anteriormente havíamos observado nos debates do V Congresso do PCB. Ali os textos de Alberto Passos Guimarães já nos chamavam a atenção por sua similitude com as teses oficiais daquele evento. E inclusive, pela semelhança, também se podia pensar na presença do autor de Quatro séculos de latifúndio (1963) nas démarches que terminaram proclamando a Declaração de 1958 como documento finalizador da controvérsia pecebista provocada pelo Relatório Kruschev entre os anos 1956-1957.

Ademais, já instigados por uma alusão que Nelson Werneck Sodré fizera em seu livro de 1962 ao modo prussiano de nossa modernização, fomos rastrear melhor, nos artigos de Alberto Passos Guimarães publicados na Tribuna de debates daquele V Congresso, referências à construção leniniana exposta em Duas táticas da socialdemocracia russa (1905) e em O programa agrário da socialdemocracia russa (1907) [3]. Advertimos nesses escritos de Alberto Passos Guimarães argumentação que, se não tematizava propriamente a questão democrática (no sentido de um outro comentário que Sodré acrescentara ao final do seu livro), por certo lastreava aquela reorientação da tática agrária comunista [4].

A essa linhagem Ivan Ribeiro incorpora circunstâncias discursivas que vivera intensamente durante quase duas décadas (1969-1987). Os primeiros dez anos correspondem ao tempo de um Brasil modernizado pela ditadura de 1964, que, nos anos de chumbo, levaria Ivan Ribeiro ao exterior. Também lhe resultou proveitoso ter conhecido o socialismo real na Polônia e vivido a via eleitoral ao socialismo no Chile de Salvador Allende. Ainda foi muito estimulante para Ivan Ribeiro sua passagem pela Itália, antes de retornar ao Brasil, no tempo do PCI de Berlinguer e do "compromisso histórico". Esta última experiência consolidou seu vínculo com a obra de Gramsci, autor da sua preferência, conhecido no convívio com velhos e jovens intectuais do seu PCB.

Novo clima intelectual no PCB

A menção ao prussianismo e às modalidades farmer e alemã de evolução agrária já aparece nos debates do V Congresso do PCB. Todavia, essas categorias produziriam novos resultados no PCB quando, na ensaística da corrente acima citada, passou-se a realçar a associação que - em sua reflexão sobre a revolução burguesa não-clássica - Lenin faz entre o problema agrário e a forma do político. A hipótese prussiana tem novo aproveitamento nos jovens publicistas brasileiros, ao tentarem apreender aquele tipo de associação numa experiência de capitalismo tardio e dependente, procurando trazer esta problematização para a práxis política de esquerda.

Como dizia um deles, aqui não tivemos um curso burguês clássico, tendo o país conhecido uma "estruturação prussiana", cuja singularidade "estaria no fato do setor agrário mais desenvolvido em termos capitalistas - o agroexportador - ter sido desalojado do poder pelo menos desenvolvido" (Viana, 1976) [5]. E ainda: "Na situação do campo brasileiro, a ausência de um campesinato dinâmico, resultante da sua falta de vínculo com a sociedade mercantil, barraria um processo de transformações agrárias ‘à americana’. Basicamente, a questão se resolvera pela assunção de papéis capitalistas pelo grande proprietário de terras, exportador ou não" (Id.: 133). O país se moderniza sob os auspícios da política, a burguesia cresce e expande o seu domínio sem postular hegemonia social e política, sempre amparada pelo Estado, "fazendo dele seu partido político real". Ao manter sua aliança com as oligarquias agrárias atrasadas e ao ter se realizado como classe sem haver dirigido um processo revolucionário, aquela burguesia se tornava incapaz de liderar a democratização da sociedade (Id.).

Em relação ao tempo contemporâneo, a referida ensaística chama a atenção para o caráter não-recessivo do novo regime que emergira da derrubada de Goulart e modernizara de modo conservador tanto a economia como a própria agropecuária (Vianna, 1983; Coutinho, 1986). Argumentava-se nessa literatura pecebista que, na circunstância do pós-64, o dado estratégico viria a ser a relação entre o intenso crescimento das forças produtivas nacionais e a natureza da transição democrática em pleno curso no final da década de 1970, sob impulso da lógica econômica modernizante mas dependente do oportuno desempenho dos atores políticos (Vianna, 1983).

Nessa construção, torna-se crucial o tema da complementaridade entre "transição política" e "revolução", trazendo-se a bibliografia que realçava o caso daqueles países que haviam se modernizado tardiamente por vias autoritárias, sem ter criado uma institucionalidade política adequada (Id.). As experiências de lá e a de cá sugeriam que, à hora do colapso dos seus regimes autoritários, poder-se-ia formar aqui uma situação na qual a democratização política do país, então cada vez mais em rápido andamento, não só viria a concluir o período ditatorial como também poderia trazer - dizia outro daqueles intelectuais - "conseqüências progressistas de efeito quase revolucionário" (Konder, 1984).

No plano da "formulação da política", esse clima intelectual representou, no PCB, um novo passo a concretizar a proposição da Declaração de Março, a qual já em 1958 havia rompido com o viés estagnacionista, passando a associar ao crescimento econômico o processo de complexificação social e a tendência do país à democratização política. Ao comparar a nossa via de modernização com o modelo clássico de revolução burguesa, aquela ensaística advertia que, aqui, a relação entre economia e política obedecia a uma lógica de natureza "muito mais irregular", também podendo-se imaginar nossa modernização burguesa como uma "revolução passiva".

Essa qualificação, sobremaneira após se apreender a nova circunstância do pós-64 como uma contra-revolução modernizadora [6], levava a se ter uma idéia de mudança social diferenciada do antigo axioma atraso/revolução. Daí se tendia a conceber o processo mudancista como uma gramsciana "guerra de posições", no dizer de Carlos Nelson Coutinho; ou, ainda, como um processo de transformações duradouras que assumiria forma de "reformismo forte" à medida que a democratização política, intensa desde a anistia de 1979, se aprofundasse cada vez mais.

Assim ampliado a partir de meados da década de 1970, esse marxismo político implica um outro modo de colocar o problema agrário, como se pode ver justamente na ensaística de Ivan Ribeiro, se lida como parte da chamada - em referência ao debate, anteriormente mencionado, que antecedeu a Declaração de Março - segunda renovação pecebista. Em vez de limitar-se à centralidade da aliança operário-camponesa, continuando o modelo marxista e leninista de revolução, a nova leitura da questão agrária - e rural - viria a conceder cada vez mais importância estratégica à relação entre a democratização social e o enraizamento progressivo da democracia política em toda a formação social; uma relação que só se assentaria com o concurso do campo da política.

A nova percepção segue a trilha aberta por Caio Prado, com sua insistência no sindicalismo, e por Alberto Passos Guimarães, autor que condicionava o tema camponês à política geral de frente única (à época, procurando mobilizar a postulação leniniana) [7]. Afastando-se da sociologia clássica das revoluções, a nova percepção iria sugerir que os camponeses fossem interpelados como uma questão relativa à condição de exclusão da "maioria da população" (no sentido do autor desta última expressão, Caio Prado) e, agora decididamente, sob o ponto de vista da "generalidade da política". Vale dizer, como grupos que, em vez de objeto de instrumentalização a serviço de operações de poder - mesmo que chamados para projetos emancipatórios futuros -, deviam ser vistos como contingentes a serem incorporados à economia realmente existente no país e à vida nacional, em particular ao seu sistema político democratizado.

Ivan Ribeiro não chegou a consolidar propriamente seu constructo agrarista, mas deixou sugestões para uma visão renovada da reforma do mundo rural brasileiro em moldes democrático-institucionais. Seu recurso à via prussiana tem esse sentido no contexto discursivo em que o conceito volta a circular no PCB. No grupo intelectual a que pertencia Ribeiro, a noção de via prussiana era relançada tanto para servir como cânone de interpretação do nosso capitalismo quanto como cânone de ciência política. Neste caso, como um recurso útil para divisar com maior definição a problemática posta aos comunistas naquela fase final do PCB: a democratização da vida nacional, requerida pelo padrão histórico da modernização pelo alto, como uma transformação de caráter prolongado (falava-se, naqueles tempos da anistia de 1979, em reversão do prussianismo). Este era o tema em torno do qual, na época, discutia-se o caminho democrático brasileiro ao socialismo.

Reforma agrária sob procedimentos democráticos

Em vez de ver na modernização da agropecuária brasileira o cancelamento da reforma agrária, Ivan Ribeiro vai mostrar que a nova circunstância reformulava o problema agrário e exigia outro tipo de reformismo. Diversamente de Caio Prado Jr., que, mesmo no pós-64, mantivera sua reserva ante o crescimento do nosso capitalismo e assim teria minimizado a questão democrática (Coutinho, 1989; 1990), Ribeiro não se fecharia ao tema da modernização, mas daria um passo a mais na consolidação da idéia de reforma agrária "ampliada". Para este conceito já apontavam alguns autores, como o próprio Caio Prado Jr., Celso Furtado e particularmente Ignacio Rangel. Com argumentos diversos, os clássicos sugeriam um reformismo que ao problema fundiário combinasse outras dimensões da questão agrária e rural, como a legislação social, no caso do historiador comunista, ou os problemas "impropriamente agrários", como propunha Rangel em 1962, atento à associação entre a reforma agrária brasileira e o excedente populacional [8].

Ivan Ribeiro expõe o seu argumento no texto "Agricultura e capitalismo no Brasil", publicado originariamente em 1975, com o pseudônimo de Cláudio Barros, na revista Études Brasiliennes, editada pelo PCB em Paris naquela época de exílio. Ribeiro procura mostrar que a agricultura brasileira já deixara de ser o locus dos setores mais atrasados da economia, modernizada por um capitalismo agrário sob a égide da grande propriedade. Ao modo prussiano, um conjunto de transformações foi adaptando nossa agricultura, substituindo procedimentos "feudais" por procedimentos burgueses, constituindo um mundo onde "misérias modernas" coexistiam com "misérias antigas" (Ribeiro, 1975; 1988), conforme a conhecida expressão de Marx.

Ao recorrer à chave do prussianismo, Ribeiro tanto reconstruía teses do seu próprio partido, que ainda alimentavam a idéia de reforma agrária antifeudal e antilatifundiária, quanto interpelava visões que convocavam ações camponesas dissidentes da ordem institucional e que, ainda naqueles anos, resistiam a aceitar o reformismo agrário brasileiro. Adotava um reformismo que, há décadas, fizera seu o tema da incorporação dos camponeses à economia realmente existente no país e passara a valorizar as possibilidades de ampliação da cidadania no mundo rural. Aliás, como defendiam, desde os anos 1950, o Iseb e o próprio PCB, bem como áreas de grandes partidos, como o PTB de Jango; e, depois de 1964, não poucos  ambientes de extração pluriclassista, que convergiam na resistência democrática ao regime militar.

Sem alimentar nenhuma forma de campesinismo reativo à modernização, Ivan Ribeiro destaca, na sua leitura do mundo rural que emergia na década de 1970, os grandes setores da agricultura, em que, dizia ele, não se justificava o parcelamento da propriedade e a criação de uma economia camponesa, e em que se deveria trabalhar para ampliar e melhorar as condições de trabalho, universalizar a legislação trabalhista e enraizar um largo e diversificado associativismo (Id.), nisso recordando Caio Prado Jr. O que não implicava menosprezar a economia familiar camponesa, à qual, por não ser ainda completamente capitalista, Ribeiro achava que um processo de reforma agrária farmer poderia trazer grandes benefícios e representar avanço considerável para vastos contingentes sociais (Id.).

Ademais, Ivan Ribeiro se mantém atento ao processo da "modernização excludente" que provocava a diferenciação "para baixo", com a dissolução das pequenas propriedades e a transformação dos camponeses em trabalhadores volantes e assalariados nos pequenos centros urbanos regionais, num contexto de fragmentação social. Ele percebia ainda que, se os camponeses perdiam a sua definição econômico-revolucionária, "eles" adquiriam nos (ou em interação com os) grupos sucedâneos um protagonismo novo, gerando outros processos sociopolíticos que convergiam com a secularização que a expansão da mídia provocava no mundo rural, erodindo a ordem oligárquica de mando da sociedade agrária (Ribeiro, 1983).

Em suma, neste registro de Ivan Ribeiro o destino do mundo rural era visto - sob olhar inspirado na melhor tradição comunista - como capaz de renovar-se em moldes modernos. Em vez de alimentar a idéia de que a modernização só lhe traria catástrofes, essa ensaística enseja a idéia de que o mundo rural não tinha por que não se conciliar com a esfera econômico-social, com a democracia política e a cultura, tal como as cidades vinham fazendo há muitíssimo tempo, não obstante as patologias que mais e mais se acumulavam em amplas franjas do seu mundo ao mesmo tempo modernista e devastado pelas novas mazelas.

Com atualizada percepção de renovamento do país, Ivan Ribeiro interpelava sua tradição, como, por exemplo, quanto ao conceito de democracia, compreendida, em relação ao mundo rural, de modo ambíguo, mais como incorporação econômico-social dos camponeses. Em sua idéia de reforma agrária "ampliada", pensada no contexto de nossa modernização pelo alto, Ribeiro não sublinhava apenas as esferas da inclusão social e da revitalização econômica, mas também uma dimensão de enlace do mundo rural com a questão democrática em geral. Dir-se-ia que, neste ponto, o autor buscava um enfoque alternativo que deslocasse a problemática da reforma agrária do âmbito "estrutural" para o "institucional". Ou seja, Ribeiro não só mobilizava sua tradição - a qual, desde meados dos anos 1950, procurava equacionar politicamente o tema agrário - como pretendia apontar processos que tornariam possível aos camponeses e trabalhadores rurais "entrar no jogo político enquanto força de classe e individualidade" (Id.); vale dizer, levá-los para dentro de um sistema político democratizado.

As outras circunstâncias vividas pelo publicista também deixaram traços na sua passagem pela academia brasileira. Não  é um acaso que a vivência no socialismo real e no Chile de Allende se faça presente nos textos que Ribeiro escreveu sobre o tema rural, ajudando-o a problematizar uma das questões da sua preocupação acadêmica: a agricultura familiar. Este tema, segundo ele, era ainda pouco estudado no Brasil da segunda metade dos anos 1970. Da vivência no socialismo da Polônia e do diálogo com o economista polonês Jerzi Tepicht Ivan Ribeiro trouxe a questão da persistência da pequena produção familiar nos processos de reestruturação da agricultura. Questão que igualmente veio da via chilena ao socialismo, experimento conturbado por condutas equivocadas quanto à expropriação das pequenas e médias unidades produtivas. Pode-se dizer que de uma e de outra experiência Ribeiro extraiu o tema da função dos pequenos produtores na reforma do mundo rural brasileiro.

A propósito disso, recorde-se que, em um de seus artigos publicados no Jornal da República em 1979, Leandro Konder chama a atenção para o fato de que, entre os autores que àquela época mobilizavam o conceito leniniano de "via prussiana", já estava Ivan Ribeiro, por conta do seu texto chamado "A importância da exploração familiar camponesa na América Latina", publicado na revista de São Paulo Temas de Ciências Humanas, em 1978 (Konder, 1979; 1980).

Com efeito, nesse ensaio há a postulação apontada por Konder: "As particularidades da América Latina - dizia Ribeiro em 1977 - adquirem maior nitidez quando observamos a circunstância de que, no continente, a evolução do capitalismo na agricultura (com exceção do México) seguiu um caminho aproximado da via prussiana. Isso significa que os latifúndios subsistem e se convertem paulatinamente em base da exploração capitalista da terra; conservam-se, igualmente, durante décadas, seu predomínio político, a opressão, a humilhação, a miséria e a ignorância dos camponeses. Não ocorreram revoluções burguesas do tipo clássico, através das quais a grande propriedade fosse destruída radicalmente (e, com ela, os traços pré-capitalistas), abrindo-se assim caminho para o livre desenvolvimento do capitalismo com base em propriedades familiares" (Ribeiro, 1977; 1988: 162).

Completemos essa passagem: "Como resultado, o que é definido na América Latina como exploração familiar camponesa resulta de um conceito mais elástico, englobando unidades produtivas cuja força de trabalho é obrigada a procurar ocupação fora dos limites de sua parcela e abrangendo arrendatários que cultivam as terras alugadas basicamente com sua mão-de-obra familiar. Entretanto, mantém traços comuns com a economia camponesa européia, tais como a utilização intensiva da força de trabalho no cultivo das terras e a baixa absorção de insumos industriais externos" (Id.: 162-3). Naturalmente, deriva do caso brasileiro essa generalização da hipótese prussiana para o continente, por sermos o país, como esclarecia então o próprio autor, "em que se faz sentir com mais força a versão latino-americana da via prussiana de transição ao capitalismo" (Id.: 166).

O destaque dado por Ivan Ribeiro às explorações familiares camponesas não era apenas uma "concessão" a seres que estariam condenados ao desaparecimento e à socialização, conforme a clássica previsão, mas decorria das "significativas qualidades" que reconhecia na economia camponesa [9]. Como registrava o autor, a valorização decorria de dois cuidados: de um lado, o de não se considerar os assalariados típicos e os superminifundistas como os únicos grupos "capazes de apoiar o processo de transformação na agricultura", e, de outro, o de evitar o menosprezo dos agricultores familiares, que levava "ao estreitamente da base política necessária ao bom êxito das reformas estruturais" (Id.). No entanto, essa valorização das explorações familiares camponesas não portava conotação campesinista, ou seja, não implicava "negar a substancial importância de uma ação simultânea em relação ao setor capitalista da agricultura", como ele próprio anotava, retomando o argumento geral nas últimas linhas do seu ensaio (Id.: 175).

Com essa trajetória, não estranha que, com o advento da Nova República, Ivan Ribeiro se licenciasse do CPDA para integrar a equipe do ministro Marcos Freire, motivado pelo que ele mesmo, à época, dizia ser um combate para afirmar uma linha mais reformista na área agrária do primeiro governo civil na redemocratização da segunda metade dos anos 1980.

Uma semana antes do acidente de avião, encontrei-me com Ivan Ribeiro na Rodoviária de João Pessoa, ele vindo de Petrolina (PE), aonde fora cumprir missão de pesquisa, e eu proveniente de Campina Grande (PB), onde então residia. Ivan me relatou na ocasião que, devido à ambigüidade da Nova República, naquele momento estava demissionário da equipe da reforma agrária do governo. No entanto, ainda esperaria uma reunião do Ministro Marcos Freire com o Presidente Sarney, agendada para os próximos dias daquele mês de agosto de 1987, da qual ele esperava definição quanto aos rumos imediatos do Ministério da Reforma Agrária.

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Raimundo Santos é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Este texto se apóia no relatório parcial da pesquisa "Pensamento social e agrarismo no Brasil" (CPDA/UFRRJ/NEAD, set. 2006). Este texto também foi publicado em La Insignia.

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Notas

[1] Esse ponto remete a duas conexões interligadas: a) o diálogo de Caio Prado com Keynes em textos dessa época; e b) as referências que o historiador então fazia à Cepal. Tais interpelações sugerem que, ao criar a Revista Brasiliense, o publicista então pretendia disponibilizar ao seu PCB uma estratégia de "reformismo forte" (Santos, 2001).

[2] Referimo-nos ao agrarismo que descende da sociologia de Florestan Fernandes e que tem José de Souza Martins como seu principal autor. Essa interpelação mobilizou o tema da cultura e manteve estreita relação com a atuação da Igreja (CPT) e grande influência no MST, pelo menos numa primeira fase da sua consolidação. Enquanto temos dedicado alguns textos à interpelação dos camponeses pela política dos comunistas, ainda estamos estudando a segunda versão agrarista.

[3] A passagem é esta: "No campo, assim, de um lado estão os latifundiários ou latifundiários-capitalistas; de outro lado, a grande massa de arrendatários pobres, o semiproletariado e o proletariado rural, toda a massa de camponeses pobres, ao lado dos camponeses médios e da burguesia rural, em luta pela posse da terra, mas sempre empurrada para engrossar o proletariado rural. As contradições entre as forças produtivas e as relações de produção chegaram a um ponto crucial. Elas nos fornecem a caracterização, do Brasil, segundo um estudioso, de um desenvolvimento à moda prussiana, sob a ação e a influência do imperialismo. Avança sem dúvida a penetração capitalista, mas os restos feudais vão sendo conservados e o monopólio da terra zelosamente defendido" (Sodré, 1962: 357).

[4] Lê-se no penúltimo parágrafo do livro de 1962: "A defesa do regime democrático, no processo da Revolução Brasileira, não se prende, assim, ao supersticioso respeito a uma legalidade qualquer, mas à compreensão de que a democracia é o caminho apropriado ao seu desenvolvimento. Não interessa ao nosso povo, evidentemente, uma legalidade qualquer, mas o regime democrático efetivo, cujo conteúdo esteja intimamente ligado ao desenvolvimento de alterações econômicas, políticas e sociais capazes de afetar profundamente o país e corresponder ao avanço das forças produtivas que impõem modificações radicais nas relações de produção" (Id.: 404).

[5] O argumento seguia: "Isso se explica, como vimos, pela impossibilidade daquele setor em dirigir o processo de modernização dado o seu isolamento real e incontornável das demais classes, camadas e estratos sociais em emergência na sociedade civil. Mas o domínio do aparelho do Estado por parte dessa elite ´atrasada` no econômico lhe vai facultar um percurso extremamente rápido no sentido da adoção de novos papéis econômicos, como o do empresário agrícola, do industrial ou do financista" (Id.: 139).

[6] Carlos Nelson Coutinho relembra o conceito de "fascismo pelo alto" de Barrington Moore para referir-se ao que ele chama de "paradoxo aparente" de um regime "contra-revolucionário" que, como no caso do Japão pré-bélico do exemplo de Moore, aqui também se colocava à frente de um processo de intensificação do desenvolvimento das forças produtivas (Coutinho, 1986).

[7] Como se sabe, uma das acepções de política exposta em Que fazer (1902) diz respeito à consciência que os grupos subalternos podem adquirir em suas próprias relações com as demais classes da formação social, ao se relacionarem com a dimensão da generalidade representada no Estado.

[8] As razões de Caio Prado Jr. advinham da sua teoria sobre a natureza da formação social; no caso do argumento de Rangel, a concentração nos aspectos "impropriamente agrários" (problemas agrícolas relativos a produção e preços, especialmente os canais da intermediação. Cf. Silva, 1996; 1998) devia-se à falta de condições políticas para um vasto processo expropriatório. O próprio José Graziano da Silva, na época do primeiro governo Fernando Henrique, retomaria aquela conexão de Rangel para propor uma nova reforma agrária "não essencialmente agrícola", ampliando o conceito ("... é preciso criar novas formas de ocupação para uma parte significativa da população brasileira que não tem qualquer qualificação profissional que os habilite a procurar outra forma de inserção produtiva no novo mundo do trabalho que se delineia já para este final de século". Cf. Silva, op. cit.: 82).

[9] Ribeiro enumerava: fonte de emprego e de aumento da produção com técnicas não-modernas (poupando assim insumos industriais), "não podendo, porém, ser consideradas como grande potencial de acumulação de capital" (Id.: 165).

Referências bibliográficas

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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