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Ziguezagues, linhas retas e voltas redondas

Luiz Werneck Vianna - Outubro 2006
 

Os mortos não governam os vivos, mas que influenciam, influenciam. É conhecida a analogia entre a história dos indivíduos e a das nações a que Tocqueville recorre para ilustrar o seu argumento sobre a singularidade americana. Para a compreensão de ambos, nosso autor recomenda o conhecimento do seu ponto de partida. Lembro a passagem: [diante de um adulto] "voltem atrás; examinem a criança até nos braços da mãe; [...] contemplem os primeiros exemplos que cheguem ao olhar dela; ouçam as primeiras palavras que nela despertam os poderes adormecidos do pensamento; assistam, enfim, as primeiras lutas que ela precisa travar - somente, então, compreenderão de onde vêm os preconceitos, os hábitos e as paixões que vão dominar sua vida. O homem está, por assim dizer, inteiro nos cueiros do seu berço". À frente, o texto conclui: "algo análogo acontece no caso das nações. Os povos sempre se ressentem de suas origens. As circunstâncias que acompanham seu nascimento e serviram para seu desenvolvimento influem sobre todo o resto de sua carreira" (Democracia na América, Livro I, primeira parte, cap. 2, p. 35 e 36, São Paulo: Martins Fontes, 2001).

A sociedade estudada por Tocqueville, em meados da terceira década do século XIX, tinha, a seu juízo, um ponto de partida afortunado: os emigrantes falavam a mesma língua e eram portadores de uma cultura comum, provinham da experiência do governo comunal em seu país de origem, e manifestavam a crença no dogma da soberania do povo. Com esse ponto de partida feliz, dois elementos - o espírito de religião e o espírito de liberdade - que, em geral, levam os povos à discórdia e à guerra civil, se combinariam em harmonia. Decifradas as circunstâncias de origem, a história se faria transparente, e, quando considera a América que tem diante de si, nosso autor vai até poder sustentar que nela "não há uma só opinião, um só hábito, uma lei, eu poderia dizer, um só acontecimento, que o ponto de partida não explique sem dificuldade" (Id., p. 37). A vasta narrativa sobre a democracia na América encontraria, pois, nas 18 breves páginas do capítulo 2 da primeira parte, "o germe do que deve seguir e a chave de quase toda a obra" (Id., p. 37).

Mas a linha reta que orientou Tocqueville para o estudo da transição ao moderno no caso americano, é, ninguém duvida, a radical exceção, não a regra. A passagem para o moderno, é de observação trivial, pode estar presidida pela disputa entre matrizes rivais, sem que, nesse processo, qualquer delas desloque inteiramente a outra, ou, se uma predominar em um dado momento, pode ser sucedida mais à frente por aquela que destronou, ou, então, se ver compelida a admitir um elemento seu de maior ou menor relevância. Tome-se o caso russo como referência de uma passagem ao moderno em que se confrontam duas matrizes rivais a partir da segunda década do século XIX, a da eslavofilia e a dos ocidentalistas, e que me serve, aqui, para efeitos de uma parábola.

Para a corrente eslavófila, reinterpretada, nas décadas seguintes, por seus herdeiros populistas, a formação social russa exprimiria, em seu processo de modernização, uma singularidade na medida em que o campesinato e seu artesanato, regidos pelas relações comunitárias em suas aldeias, poderiam favorecer uma saída especificamente russa, em um salto sobre o estágio capitalista em direção ao socialismo, evitando-se assim os horrores descritos na parte sétima de O capital.

Como é sabido, essas concepções foram duramente criticadas pela socialdemocracia russa, que imprimiu nova vida às formulações ocidentalistas, com Lenin, na última década do século, contrapondo uma via americana para o mundo agrário russo às idealizações românticas do camponês e da sua vida comunitária, tão caras aos populistas. O mesmo Lenin, em um texto famoso de 1907, chegou a admitir a possibilidade de que essa categoria social viesse a exercer o papel do burguês radical na revolução do seu país. A história subseqüente ignorou a linha reta na evolução do campesinato russo, e a revolução de 17, feita em nome dos ideais revolucionários do Ocidente, somente se tornou um projeto realizável quando se incorporou a ela o programa agrário dos socialistas revolucionários, roupagem nova do velho populismo de alma eslava. Na Rússia de hoje, a história segue seu ziguezague, com o liberalismo russo mal encobrindo o seu Estado de estilo grão-russo.

Sugiro que, na presente sucessão brasileira, menos pela intenção dos atores envolvidos, mais pelo resultado de ênfases retóricas mal calculadas, o baú dos mortos foi aberto e o que era para ser - e vinha sendo - uma burocrática e enfadonha competição política com temas mais vizinhos de eleições municipais, já se tornou uma controvérsia relevante, embora nada dramática, sobre a natureza do nosso processo de modernização e de como levá-lo adiante. Sintomaticamente, está aí aberto o inventário da era Vargas, e, com ele, o da tradição republicana brasileira. Estão aí o papel do Estado e de suas empresas no desenvolvimento econômico, a máscara mortuária do "pai dos pobres", e, no plano simbólico, as evocações de uma relação direta entre o chefe de Estado e a massa do povo. Até lembranças de simples jingles do passado, "o sorriso do velhinho faz a gente trabalhar", do final dos anos 1940, ecoam no "deixa o homem trabalhar", de hoje.

Retorno anacrônico à Ibéria, a partir desses dois adversários dela - o PT e o PSDB -, que surgem na história com a crítica corrosiva ao nacional-desenvolvimentismo e do que seria a natureza perversa do patrimonialismo brasileiro? O retrato atual das duas candidaturas em confronto, uma que deu seqüência à política macroeconômica de inspiração neoliberal da outra, mas que se encontram, pelo menos, no plano do discurso, com os temas da era Vargas - recordar que o candidato do PSDB não se comprometeu com as teses da privatização e assumiu um estilo desenvolvimentista -, bem longe do anacronismo, parece insinuar que o papel das origens no destino das nações teria descoberto, por mais uma dessas astúcias da razão, uma oportunidade para se manifestar.

Somos ibéricos e americanos, não se podendo esquecer que a floração de americanos no Brasil, antes da revolução passiva da Independência, tramava, sem êxito, uma revolução nacional-libertadora. Derrotados, não saem de cena, e terão uma presença animada na Regência, e não fosse um acidente da zoologia - uma disciplina chave para a compreensão das monarquias, levando-se em conta uma recomendação de Marx -, uma vez que o imperador nos deixou um herdeiro, talvez contassem com melhor sorte. Voltarão, contudo, com a República e com a obra de um americano convicto, a Carta de 1891. Não era, porém, a sua plena hora, e a política dos governadores nos devolve ao Poder Moderador ibérico, porque com aquele "papel", alguém poderia dizer, não se poderia governar.

Em meio à crise dos anos 20, vai-se perdendo a crença de que, pelo arsenal de recursos do liberalismo, podia-se chegar à América da cultura material e de suas instituições cívicas. E foi assim que a revolução de uma Aliança Liberal em pouco tempo se reencontra com a Ibéria, governando com seus quadros mais conspícuos, como Oliveira Vianna, Francisco Campos e Agamenon Magalhães, mas sem deixar de atrair os americanos no seu front cultural, pelos caminhos da cooptação. A "viagem redonda" de Raymundo Faoro, que cito, sem subscrever todos os seus termos, é a melhor metáfora de uma história que tem horror à linha reta, articulando a Ibéria do Império à de Vargas dos anos 30: "o regime de 1937-45 não se explica como mistificação da cúpula, como mistificação não foi o Império. Suas bases permanentes que os interregnos de 1889-30 e de 34-37 apenas dissimulam - dissimulam porque neles vigem as vigas mestras da estrutura -, traduzem a realidade patrimonialista, na ordem estatal centralizada" (Os donos do poder, vol. 2, Editora da USP, 1975, p. 75).

Reconfigurada a Ibéria em 1945, posta em ambígua convivência com a matriz liberal, os anos seguintes serão os da cada vez mais acirrada disputa entre seus pressupostos e concepções acerca dos caminhos sobre a modernização do país: capitalismo de Estado ou capitalismo de mercado. Disputa dramatizada nas lutas pelo petróleo é nosso, e, mais tarde, na criação de Brasília, uma cidade, como São Petersburgo, criada pelas mãos do Estado a fim de impor à sociedade uma ida ao Oeste que ela se recusava a fazer. Diante do impasse entre elas, cada qual recorreu a um tertius: a Ibéria, desde o segundo mandato de Vargas, ao sindicalismo organizado dos centros urbanos, encorpado, na década seguinte, pelos trabalhadores do campo; os liberais, aos militares, primeiro após a renúncia de Jânio Quadros, e, finalmente, no movimento que levou ao golpe militar de 1964.

A solução de 1964 superou ambas, mas conservou delas, no seu modelo de capitalismo autoritário, especialmente após o AI-5, elementos intrínsecos às duas matrizes: de um lado, o papel do Estado como lugar-chave da sua estratégia de modernização capitalista e como instrumento da ideologia de grandeza nacional; de outro, concedeu centralidade ao projeto de expansão privada da acumulação capitalista, para o que removeu os obstáculos sociais e políticos que a travavam, fazendo do público um lugar de promoção dos valores de mercado.

As duas matrizes rivais voltam a se confrontar na Constituinte - a da Ibéria, porém, já sob a formatação democrática que lhe foi imposta pelo movimento de resistência ao regime ditatorial -, ambas encontrando expressão no novo texto constitucional. Mais uma roda do destino, e a agenda da Ibéria será inteiramente deslocada pelo Governo Collor, na primeira sucessão presidencial após a democratização do país, e embora recupere algo do seu alento no breve hiato Itamar, encontrará má sorte nos oito anos de FHC, que começa seu governo sob o lema de sepultar a era Vargas.

Contudo, nações animadas, desde a origem, por dois princípios contraditórios vivem expostas a soluções imprevistas, em particular quando os atores envolvidos interpretam mal as suas circunstâncias. Assim, se as eleições de 2002 levam ao primeiro governo de esquerda da história do país, com um programa em que revê e atualiza, em boa parte, a herança da tradição republicana brasileira, apontando para uma ruptura com as práticas e concepções anteriores, a inflexão, operada logo em seus primeiros atos, traduz uma continuidade com elas. Preserva-se a política macroeconômica do antecessor e se afrouxam os vínculos com o movimento social organizado, ao mesmo tempo em que se descobre, no campo da política social, novas e inéditas fontes para a legitimação política, ao menos imediatamente neutras quanto às suas repercussões na política econômica em curso e quanto à mobilização social.

É fato que, por trás das fortes continuidades, gestava-se, aqui e ali, uma reanimação do papel do Estado e da dimensão do público na condução estratégica da economia, casos claros no setor da energia e da construção naval, e não se deixava de ouvir algo do jargão desenvolvimentista. No entanto, o governo, mais do que cultivar a expectativa de decidir, quando o tempo lhe fosse oportuno, em favor de uma das alternativas em presença, demonstrava ter optado por um mix em que cada qual se fizesse presente, embora sob hegemonia dos compromissos que lhe vinham da sua agenda macroeconômica, a que se devia acrescentar a sua política de assistência social, "neutra" em relação a elas.

De qualquer forma, tais práticas e discursos não se apresentavam como dominantes, não tendo demorado muito para que o novo ministro da Fazenda, antes com reparos dissonantes, viesse a replicar a mesma fala do seu famoso antecessor, Antonio Palocci. Nem era com eles que o Presidente contava para sua campanha à reeleição, vaticinada por gregos e baianos a ser resolvida em primeiro turno a seu favor. Mas, no meio do caminho, havia o imprevisto dos aloprados e da sua montanha de dinheiro. Haveria segundo turno e, nele, os votos da Heloísa Helena e do PDT de Brizola. Nessa comédia de erros, o revivalismo da era Vargas encontra a sua hora, em que os mortos parecem se divertir com os vivos: a nação contra o imperialismo, o público versus o privado, Lacerda, o major Rubem Vaz, o crime da rua Tonelero, e, é claro, Getúlio, Gregório Fortunato e a República do Galeão. Tudo e todos personagens desse marketing insuportável dos e-mails, que mente ao insinuar que vivemos em tempos de antagonismos schmittianos inarredáveis, logo nós, cidadãos desta aprazível República do Centro.

Não é o caso para este revival, como, no fundo, até sabem os especialistas da nova política dos e-mails. Ganhando quem ganhar, e, salvo mais outro imprevisto, deve ser Lula, a política macroeconômica será a que aí está, mais ou menos aggiornata, variando as circunstâncias. Um Meirelles deve ficar, a ver quem será o Palocci da vez e o próximo cúlaque na administração do capitalismo agrário brasileiro. Quase certo - nessas circunstâncias de importância política ainda mais acrescida do STF - algum Nelson Jobim para o Ministério da Justiça, ele que ocupou a mesma função no governo FHC. Afinal, são dessas regiões da administração que vêm os que efetivamente mandam. Altamente improvável, além dos reajustes pragmáticos, um segundo mandato descontínuo ao primeiro, não só pelo forte motivo de que a reeleição foi ganha pela ação combinada das três pontas do seu mix, como também pela herança que recebe dele: uma oposição acirrada, temas sensíveis mal resolvidos, dois governadores de estados estratégicos, São Paulo e Minas Gerais, eleitos pelo principal partido adversário, ambos já declarados postulantes à próxima sucessão, condições que não recomendam a abertura de uma frente de litígio com as elites social e economicamente dominantes, em especial quando se considera o atual estado de letargia cívica dominante na vida social.

Dessa vez, a volta não será redonda. As duas matrizes, que conviviam às turras na Constituição, foram consagradas pelos dois candidatos. Decerto que com mais força em um do que no outro, e, se o "mercado", nessas eleições, não foi um grande eleitor, nem delirantes devaneios podem urdir a fantasia de que ele deve ser considerado perdedor. A tese subsumiu por inteiro o que deveriam ser as forças da antítese, inclusive a era Vargas. A pachorrenta revolução passiva brasileira segue seu curso.

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Luiz Werneck Vianna é sociólogo e professor do Iuperj. Este texto também foi publicado em La Insignia.

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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