Os brasileiros que formaram sua consciência durante a IV República, entre 1946 e 1964, gravitaram em torno de duas entidades mÃticas: o inelutável proletariado e a indispensável burguesia nacional. As forças agrupadas em torno dos dois personagens variaram entre a conciliação e a reforma, como realidades polÃticas, e a revolução, como utopia quimérica. Como o proletariado era força de longo prazo, no dia-a-dia competia lidar com a burguesia (nacional ou nacionalista, conforme a ênfase).
Nos livros e manuais era relativamente simples identificá-la. Grande parte da esquerda, que produzia esses conceitos, raciocinava por esquemas, em geral importados. Propunha-se um paÃs ideal independentemente do paÃs que existia. A realidade não importava tanto quanto a sua racionalização. O burguês era um taumaturgo, uma figura seminal difusa no ar. Vê-lo em carne e osso era difÃcil. Mas, se havia o burguês progressista, seu nome era o do paulista Fernando Gasparian.
Ele morreu no dia 6, mas seus apressados obituários não fizeram justiça ao que fez e ao que representou nas teorizações de conciliadores, reformistas e revolucionários. Gasparian ganhou bastante dinheiro e podia ter deixado de lado as idéias que desenvolveu, as mais primitivas discutidas com dois importantes amigos desde a juventude no interior de São Paulo, Fernandos como ele: Henrique Cardoso e Pedreira.
FHC, o mais bem-sucedido como intelectual, foi também o que mais alto chegou à s escadarias do poder. Pedreira trocou a trincheira jornalÃstica pelo governo, não resistindo ao canto de sereia de FHC, que lhe ofereceu um emprego de alto nÃvel em Paris.
Gasparian foi o único que combinou esses dois elementos a outro, que faltou aos amigos: o de empresário. Chegou ao máximo, com sua América Fabril, uma indústria de tecidos, quando João Goulart foi presidente da república. Seguiu-o no declÃnio. Perseguido pelos novos donos do poder, passou um tempo dedicado a atividades acadêmicas na Inglaterra. Retornou ao Brasil convencido de realizar o projeto de criar um periódico independente, democrático e altivo, conforme modelos europeus inspirados em alguns dos melhores jornais de esquerda ou liberais do continente.
Desse compromisso surgiu Opinião, em 1972, em pleno governo Médici, o mais violento do perÃodo militar. Opinião foi o mais bem sucedido empreendimento da imprensa alternativa, embora prejudicado por alguns erros de concepção, que subestimaram o ânimo repressor do regime. A afiada tesoura da censura, que começou a agir no número 9 e se tornou devastadora a partir da 23ª edição, desfazia o empenho da redação. Mas as dissensões internas também prejudicaram o semanário.
Quando a equipe liderada por Raimundo Rodrigues Pereira se retirou, por não conseguir acertar-se com o dono, Fernando Gasparian chamou Argemiro Ferreira para ser o editor. Opinião perdeu muito em qualidade informativa, na capacidade de acompanhar os acontecimentos, mas ganhou densidade analÃtica. Tornou-se parecido à s publicações européias nas quais Gasparian se inspirou. Infelizmente, porém, o Brasil não era a Europa e o jornal não resistiu à sabotagem do governo. Mas morreu, em 1977, depois de 231 edições, com a dignidade que faltou aos últimos dias do Pasquim, a publicação alternativa de maior sucesso.
Gasparian perdeu a batalha, mas não desistiu da guerra. Voltou ao front cultural através de outros periódicos, como Argumento, e se tornou editor de livros, comprando as editoras Saga e Paz e Terra e dando-lhes uma linha editorial de alto nÃvel. Não visava apenas negócios: queria espalhar idéias, defender proposições, assumir uma posição pública, a da lendária burguesia nacionalista. Tentou até o fim. Merecia acompanhamento melhor à sua última morada.
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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2005).