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Cê, de Caetano Veloso

Jaldes Reis de Meneses - Janeiro 2007
 

Tem causado espanto na crítica musical o fato de Caetano Veloso ter aposentado em seu mais recente disco (Cê) os violoncelos, as pallas e os arranjos refinados de Jacques Morelenbaum, substituído por um conjunto juvenil de guitarra, baixo, bateria e teclados.

Há um ardil na composição do grupo de excelentes e jovens músicos (Pedro Sá, guitarra; Ricardo Dias Gomes, baixo e piano Rhodes; Marcelo Callado, bateria) que acompanham Caetano: eles estão disfarçados à maneira de um conjunto de rock de garagem, porém são na verdade músicos profissionais, antenados com o mundo, cientes do trabalho feito, inclusive nos discretos adicionamentos de música eletrônica justapostos aos arranjos, onde sobressai o trabalho de produção e Pedro Sá e Moreno Veloso.

O rock ficou conhecido no século passado como um ritmo gutural de adolescentes que despertavam para a sexualidade. Neste sentido, o disco de Caetano continua fiel à tradição do rock. Considerando uma análise estritamente musical, Cê rememora discretamente as estruturas composicionais de Raul Seixas. Entretanto, no tocante à forma poética, permuta os dilemas mais simples de adolescente - ou de um brasileiro gauche pelo motivo de não ter nascido americano (representação de Caetano sobre Raul Seixas na homenagem "Rock’n’Raul", uma das canções de Noites do norte, disco de 2000) - pelos complexos vividos de um sexagenário, exalando uma dura sexualidade masculina e audaciosamente não feminista: não tenho inveja da maternidade/ nem da lactação/ não tenho inveja da adiposidade/ nem da menstruação/ só tenho inveja da longevidade/ e dos orgasmos múltiplos("Homem").

A festa adolescente, em Cê, cede lugar ao lamento, a uma visão melancólica de mundo (Walter Benjamin afirmava que os estados de melancolia possibilitam ver melhor). A partir do próprio título (Cê), o compositor se dirige diretamente a uma única personagem em quase todas as canções - exceção de três: "Minhas lágrimas" (meditação sobre uma catástrofe, em Los Angeles), "Waly Salomão" (oração fúnebre ao poeta e amigo recém-desaparecido) e "O herói" (polêmico manifesto sonoro sobre a questão racial brasileira, cuja letra, por si mesma, mereceria um artigo à parte) -, entabulando um diálogo ríspido, contudo, sempre diálogo de cumplicidade.

Cê vem a ser uma musa, na melhor tradição das musas poéticas de Petrarca (Laura) e Dante (Beatriz) - alguém que complementa e dá sentido a uma individualidade, com a diferença de que os dois poetas renascentistas cantavam a musa no começo da jornada humanista/antropocêntrica, e Caetano cuida de sua musa nos estertores desta mesma jornada, em um período de crise e mutação do sujeito: você nem vai me reconhecer/ quando eu passar por você ("Outro").

O compositor baiano altera e atualiza o registro literário da musa. A antiga musa angelical, idealizada, sublimada nos momentos de enlevo, encontro e despedida, cede lugar a uma espécie de pontuação esquizofrênica, de alteração abrupta, entre o enlevo e o pesadelo da convivência cotidiana: com você eu tenho medo de me apaixonar/ eu tenho medo de não me apaixonar/ tenho medo dele, tenho medo dela/ os dois juntos onde eu não posso entrar ("Deusa urbana", canção de sonoridade parecida com a dos Tribalistas).

O todo é um: cantando o (des)afeto privado à sua "Musa híbrida" (tu onça tu/ eu jacaré eu), título de uma das poucas canções relaxantes de Cê, tem-se, no mesmo movimento, a simulação de uma época histórica em que as esperanças de transcendência do paraíso amoroso já se exauriram.

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Jaldes Reis de Meneses é professor dos programas de pós-graduação em História e Serviço Social do CCHLA-UFPB.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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