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Lula e a força do povo

Hamilton Garcia de Lima - Março 2007
 

O mote da campanha petista à reeleição sugeria que Lula governaria com "a força do povo". Mais uma vez fica claro que tal força, no Brasil, tem caráter episódico, meramente eleitoral, não fazendo parte permanente da institucionalidade democrática.

A razão disto está inscrita no nosso processo de massificação social e política, pautado por uma dualidade econômica atroz que manteve a maioria dos pobres apartados da propriedade da terra, conseqüentemente da cidadania e da política. A estrita dependência do povo em relação às elites dominantes - outrora "coronéis", hoje "doutores" -, estimulada por uma economia quase estagnada, de um lado, e, de outro, por regras eleitorais que permitem a quase independência do corpo político em relação ao eleitor, faz da nossa democracia um jogo frustrante onde uns poucos ganham e muitos perdem.

O resultado está à vista de todos: corrupção, demagogia generalizada e a população desprotegida nas ruas dos centros urbanos.

Tocqueville, estudioso dos processos de modernização política do século XIX, já alertava para o fato de a democracia, para não ser tirânica, precisar da organização política dos cidadãos. Em sua percepção, a democracia - que ele definia como a crescente igualdade de condições criadas pelo desenvolvimento econômico - não poderia, ao contrário do que imaginavam os socialistas, fundar por si mesma a liberdade. A liberdade apenas poderia se realizar como conquista da vontade dos cidadãos, tendo por esteio a igualdade.

Nossa história republicana foi parcimoniosa na busca da igualdade (democracia), o que, em boa medida, explica o bloqueio à conquista da liberdade. A participação política foi, aqui, obstaculizada tanto pela desigualdade - abolição sem reforma agrária (Joaquim Nabuco) - como pelo temor das elites dominantes de que a liberdade dos simples implicasse a perda de seus privilégios coloniais - entre eles, o de remunerar trabalho no nível da subsistência. Basta ver a perseguição implacável sofrida pelos anarquistas e, depois, pelos comunistas durante quase todo o século passado - o PCB, em seus 70 anos de vida, teve não mais que 10 de existência legal - para entendermos a radicalidade do veto.

Em nossa engenharia modernizadora, de matiz prussiano - como diriam Konder, Coutinho e Vianna -, as velhas classes terratenentes foram tornadas aliadas da cidade por sua produção de saldos de exportação para financiar a industrialização, assim como guardiães do "ëxército de reserva" para o setor urbano em expansão. Deste modo, a mobilização política do povo se antagonizava à modernização capitalista ao se constituir em real ameaça de valorização do trabalhador urbano, quer por sua sindicalização ou pela diminuição do êxodo rural em função da perda do monopólio da terra pelos latifundiários. Greve, reforma agrária e sindicalização rural erigiram-se em verdadeiros espantalhos para afastar as elites do tão propalado e pouco praticado liberalismo político.

A força do povo, embora resistente, não foi capaz de furar este bloqueio imposto de cima, deixando-se guiar pela solução de compromisso oportunizada pelo populismo varguista, que oferecia um mínimo de cidadania urbana a par de sua extensão suave ao campo.

O sucesso deste modelo de compromisso pode ser aferido por sua longevidade: triunfando em 1930, rompe-se em 1964 e é parcialmente ressuscitado pelo PT em 2002. Nestes 77 anos, o país se transformou numa economia industrial assentada numa sociedade pobre (Mangabeira Unger) e, de novo, mostra-se incapaz de realizar o desenvolvimento integral (Adam Smith).

Crítico ferrenho deste modelo de sociedade/desenvolvimento, o PT se rendeu de bom grado às delícias do poder, produzindo um dos mais espetaculares transformismos (Gramsci) de que se tem notícia na América Latina. Se Lula e o PT conquistaram a "força do povo", qual a razão de tamanho recuo?

A resposta a esta questão é complexa, mas uma parte dela pode ser fornecida pela constatação de que o povo brasileiro se acomodou ao jogo das elites, ao compromisso do qual lhe sobram migalhas - nem por isto desprezíveis em relação ao nosso atraso civilizacional.

As sementes da dependência e subordinação popular - da tirania, diria Tocqueville -, que semeamos ao longo de toda nossa história republicana, estão dando seus frutos malignos na forma do conformismo e do oportunismo, formas de entrega lúbrica (Gilberto Freyre) às delícias do jogo político, com suas prendas e prebendas.

O caminho da democratização segue seu lento e gradual ritmo, mas a aceleração da molecular desconstrução da sociedade brasileira, pela via da desindustrialização precoce, corrupção e violência, sinaliza que ele não é mais seguro como outrora. Parece que é chegada a hora de superarmos nosso "insolidarismo" histórico (Oliveira Vianna) e recuperarmos mais uma vez o vigor cívico que, nos anos 1970-80, empurrou a classe política para longe do regime militar.

É o que nos sinalizam as balas perdidas que nos vitimam sem aviso prévio a cada dia.

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Hamilton Garcia de Lima é sociólogo e cientista político.



Fonte: Gazeta Mercantil, 12 mar. 2007.

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