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Na Itália, nasce o Partido Democrático

Rudá Ricci - Abril 2007
 

1. A esquerda se rearticula

Não basta saber narrar a história, é preciso saber contar o futuro. Com esta frase de efeito, Piero Fassino concluía seu longo discurso no 4º Congresso dos Democratici di sinistra (DS), realizado em Florença em 19 de abril, partido que um dia foi o Partido Comunista Italiano. Pouco antes, havia sido anunciada a vitória da tese de Fassino, que contou com o voto de 75,6% do total de 255 mil militantes dos DS que participaram da consulta partidária. Estava em jogo o fim dos DS e sua fusão com a Margherita [ou DL, Democrazia e libertà], partido da ala católica progressista do país que, embora tenha oficialmente seguido as orientações do Vaticano, não raro votou a partir da pauta da esquerda italiana. No final da mesma semana, a Margherita realizou seu congresso em Roma, com o mesmo objetivo de iniciar o processo de fusão, nascendo assim o Partido Democrático (PD).

A fusão não foi e não será uma tarefa simples e passará por um longo período de processo constituinte, estimada por vários dirigentes presentes no 4º Congresso como não inferior a oito meses. A corrente liderada por Fabio Mussi, representante de 15% dos delegados, contrária à fusão, anunciou nos dias que antecederam este congresso que abandonaria os DS e tomaria um caminho até aqui considerado totalmente incerto.

Não é um caso simples de fusão. O 4º Congresso dos DS esteve o tempo todo revestido de grande simbologia e comoção entre os 1.550 delegados.

As novidades começam com a insólita presença de Silvio Berlusconi durante todo o primeiro dia do Congresso dos DS. Berlusconi é o líder da oposição, uma nítida oposição de direita ao governo de centro-esquerda da Itália, liderado pelos DS, mas composto por uma coalizão (L’Unione) que envolve todo o espectro de partidos radicais (como o Partido Verde e a Refundação Comunista) e reformistas (como DS e Margherita). Seria algo similar à presença de Jorge Bornhausen, durante mais de três horas, num congresso nacional do PT. Berlusconi esteve sentado na primeira fileira do congresso dos DS, não foi hostilizado e, ainda, recebeu uma menção no discurso de Fassino, que agradeceu sua presença e disse que ela demonstrava que não eram inimigos, mas adversários, e que adversários se respeitam.

Muitos delegados presentes afirmavam que esta decisão histórica remonta à união dos socialistas italianos em 1966, que durou apenas dois anos. Os mais experientes citaram Antonio Gramsci, fundador do Partido Comunista Italiano, que pregava a aproximação dos comunistas com os católicos na construção de um projeto e discurso hegemônico na Itália. O fato é que, se a direita está unida ao redor de Berlusconi, agora a esquerda se recompõe: os partidos radicais (Refundação Comunista e o pequeno PdCI, Partido dos Comunistas Italianos) anunciam sua fusão; as correntes socialistas fazem o mesmo e, a partir de agora, DS e Margherita iniciam seu processo constituinte para lançar, em 2008, a assembléia de fundação do Partido Democrático.

A criação do PD parece ser o lance mais ousado e inovador deste processo de rearticulação da esquerda italiana. É uma aposta no futuro, como dizia o slogan do 4º Congresso dos DS, uma aposta na articulação do projeto coletivista socialista com o respeito à individualidade dos liberais progressistas.

2. A esquerda que sobreviveu?

No discurso de Fassino, todas as senhas para a criação do PD foram citadas, o que didaticamente facilitou a compreensão da novidade que se anuncia. Do ponto de vista ideológico, duas questões parecem fundamentar sua criação: a sobrevivência do projeto de esquerda após a queda do Muro de Berlim e a renovação da pauta e estrutura organizativa dos partidos, abertos à juventude e à alternância de poder interna, para, assim, legitimar as estruturas partidárias como representação social.

Fassino diz que o reformismo é a única esquerda que sobreviveu à queda do Muro de Berlim, ao longo dos anos 90. Não deixa de ser uma frase de efeito. Mas ela é acompanhada por uma extensa pauta, que parece dar o tom desta inovação programática: a busca da igualdade social, a sustentação da prosperidade, a aproximação com o movimento ambientalista, a forte presença e atração dos jovens, a defesa da segurança da nova família (monoparental, com filhos adotados, com filhos oriundos de vários casamentos, filhos de pais gays), o internacionalismo, a mundialização das esquerdas (principalmente sua articulação na União Européia, através do Partido Socialista Europeu, articulação de todos os socialistas democráticos do continente), o forte controle cidadão e dos próprios militantes sobre os rumos do partido. Neste último aspecto, se anuncia o voto secreto em todas decisões congressuais do novo partido e o impedimento de dirigentes serem reconduzidos aos seus cargos, garantindo a alternância e a presença cada vez maior de dirigentes jovens, além da presença das mulheres. Os DS, hoje, possuem uma grande parte de seus dirigentes abaixo da faixa de 40 anos, algo impensável há dez anos.

Outra novidade anunciada é a fusão das esquerdas, num processo não muito comum na história deste espectro partidário. As esquerdas, como é motivo de falas jocosas de quem não é de esquerda, sempre se dividiu em correntes e frações. Os dirigentes dos DS sustentam que o mundo caminha, ao contrário, para a bipolaridade. Não a bipolaridade excludente, violenta, mas da alternância, da convivência e respeito democráticos.

Conversando com os dirigentes da Juventude de Esquerda (DS), a aproximação entre socialistas e liberal-democratas (esta é a denominação mais empregada durante o 4º Congresso) ganha maior nitidez. Os jovens, grupo social mais cobiçado pelos dirigentes dos DS, sugerem que a globalização instalou entre os jovens a melancolia em virtude de um futuro incerto (25% dos italianos entre 25 e 35 anos de idade ainda residem com seus pais, em virtude da falta de oportunidades no mercado de trabalho) e a busca de prazer imediato, pela diferenciação e senso estético aguçado. A juventude se une a partir da identidade cultural mas, principalmente, pela defesa da diferença, de nítido caráter pessoal. Faz sentido para os jovens dirigentes da esquerda que a pauta liberal se incorpore ao projeto socialista. Seria uma mescla contemporânea, afirmam vários jovens presentes neste Congresso.

Por este motivo, a proposta de dar voz ao cidadão, a partir de uma cota não determinada pelo partido, foi muito ovacionada. Interagir com o cidadão comum (que alguns liberais progressistas da Itália ainda denominam de cliente em seu jornal Europa) e criticar a burocracia partidária, que os jovens intitulam de oligarquia, sugere uma tentativa de construção da competição cooperativa, capaz de agregar mais pessoas. Sugere a tentativa de diálogo com uma nova identidade cidadã, marcada pela comunicação através do computador doméstico, pela relação via internet, pelo acesso instantâneo à informação, às tribos sociais.

A palavra de ordem do PD é a construção de uma política difusa, radicada em todos os territórios, em rede, capaz de produzir cultura e agir no interior da sociedade, sem se reduzir a um mero comitê eleitoral (artigo de Mario Rodriguez, publicado no jornal Europa, em 19 de abril último, cujo título era "Ceder cota ao cidadão"). O que se falava pelos corredores do 4º Congresso era a necessidade de se garantir a representatividade partidária, via pluralidade intercultural da sociedade. Somente assim, acreditavam os delegados presentes, será possível reconstruir o sentimento de pertencimento social a uma sociedade cada vez mais fragmentada e competitiva e desconfiada dos partidos políticos.

3. Nem tudo são rosas

Já se fala numa longa jornada. Não por outro motivo, a abertura do 4º Congresso dos DS teve início com uma fala solo, em tom teatral, de Caterina Cocchi, 22 anos, que saiu dos fundos do auditório Nelson Mandela, passou pelas mesas dos delegados e se postou à frente da tribuna. Relatou brevemente a recente história dos jovens e da esquerda, falou da esperança na aliança governista (a Unione) e na possibilidade de garantir seu desejo no novo partido. E também não foi casual que Fassino tenha terminado seu discurso conclamando à unidade das correntes derrotadas na consulta pré-congressual. A unidade interna dos DS será tão delicada quanto a fusão de DS com Margherita.

O prefeito de Bolonha, em carta aberta assinada por outros prefeitos dos DS, exigiu a garantia de um amplo processo de discussão no que se intitula processo constituinte. Um processo que envolva não filiados, cidadãos em toda Itália e italianos não residentes em seu país. Esta preocupação com os migrantes é cada vez maior, desde que se tornou possível, há três anos, um italiano não residente na Itália concorrer e se eleger senador ou deputado do Parlamento Italiano. São seis cadeiras para o Senado e doze para a Câmara de Deputados que hoje são preenchidas por representantes da comunidade italiana do exterior. Talvez, a proposta mais globalizada da política mundial até o momento. Esta possibilidade vem motivando a organização de partidos e coalizões eleitorais italianos em toda América Latina, onde deputados e senadores italianos foram eleitos no Brasil, Argentina e Venezuela.

Os discursos que se sucederam no segundo dia do Congresso dos DS foram desnudando as nuanças internas e as dificuldades dos próximos dias.

Um importante professor universitário iniciou sua fala dizendo que ou o socialismo é radical, ou não existe. Destacou a luta histórica dos sindicalistas europeus, a luta pela paz, finalizando a necessidade de um autêntico programa reformista, que siga a tradição socialista.

Logo depois, um gay e uma lésbica discursaram, iniciando com o sentimento que parecia reinante no Congresso: "Vivemos um momento de grande desconforto, mas diremos sim ao PD, sim ao respeito aos cidadãos, ao partido da sociedade inclusiva. Se perdermos esta batalha, perderemos tudo. Lutamos pela inclusão dos gays, lésbicas, bissexuais e transexuais. A direção paritária não é apenas possível, mas necessária". Foram muito aplaudidos, o que anunciava a forte expressão pela pluralidade e pelo caráter laico da política pública, tema em questão e debate na fusão de católicos e socialistas (ex-comunistas).

O autor da terceira tese (também derrotada pelos delegados), Gavino Angius, deu forma ao apoio crítico que envolveu grande parte dos delegados presentes. Propôs a reelaboração completa do manifesto de constituição do novo partido. Sugeriu o envolvimento de todo o campo reformista socialista da Itália. A aliança com católicos, afirmou, limita o campo cultural e político do novo projeto. Foi muito aplaudido quando destacou a necessária soberania do Estado, garantia da liberdade individual.

Este foi um dos pontos destacados por Fabio Mussi, que fez o discurso mais esperado do segundo dia. Mussi anunciou sua ruptura com o processo de constituição do PD. Num discurso essencialmente emocional, recuperou o eixo das teorias clássicas socialistas a respeito da necessidade do Estado laico. Sustentou que o catolicismo é um valor, mas não pode fundar um Estado moderno. "Com o PD, criaremos um problema na Europa: será a cisão da família socialista européia". Em sua avaliação, o novo partido será centrista e americano e não garantirá a Lei de Direito à Convivência (Dico), que sustenta direitos ao casamento não formalizado, a adoção e união entre gays, entre outros direitos. E retornou ao foco das dúvidas presentes no Congresso: "O espírito laico garante o espaço de todos. O Estado laico é a garantia para a liberdade individual, é a garantia da liberdade da cultura, da arte, da liberdade religiosa. Este é o único princípio, não negociável, que garante a liberdade religiosa e evita os conflitos entre convicções de fé". Criticou profundamente o que denominou superpersonalização da política e desejou sorte a todos os delegados.

Antonio Gramsci foi disputado por quase todos principais líderes que discursaram. Gramsci da luta política como luta de idéias, Gramsci da construção política sob hegemonia socialista, Gramsci da renovação e criatividade marxista. O dirigente comunista, preso pelo fascismo, foi utilizado como fundamento para diversas posições no Congresso.

4. Una forza grande come il futuro o... il fantasma socialista

O slogan do 4º Congresso dos DS aludia à construção de uma grande força política voltada para o futuro. No segundo dia deste congresso, um importante jornal italiano estampava no seu artigo principal que o socialismo teria se tornado um fantasma. Um título irônico, porque fez lembrar o início do Manifesto do Partido Comunista, escrito por Marx, embora a ironia fina do texto de 1848 tenha se evaporado na página do jornal.

O fato é que desde a queda do Muro de Berlim, a crise das esquerdas (ou sua falência como projeto político real) foi anunciada dezenas de vezes. Mas, ao contrário, as esquerdas demonstram um incansável poder de renovação e reconstrução. Os céticos dirão que se trata de tentativas desesperadas, de fuga da crise. Mas tal argumento parece contestado pelas urnas da América Latina e mesmo na Europa. O processo de preparação do 4º Congresso dos DS envolveu mais de 200 mil filiados em toda a Itália e foi objeto de intensa procura e atenção da grande imprensa local.

Não é a direita que inova, a despeito de querer se firmar como não conservadora. Mas não basta a inovação tecnológica para mudar positivamente a vida social. É preciso ter um projeto de humanidade, uma utopia e uma crença política coletiva. O discurso das forças de direita parece continuar estacionado na reação e não avança na proposição política. Na França (onde esquerda e direita disputaram acirradamente as eleições no final de semana em que ocorreu o 4º Congresso dos DS), o discurso das forças de direita tem na reação à imigração seu trunfo eleitoral. Mas é a esquerda que apresenta possibilidades reais de uma nova leitura da realidade e que propõe se atualizar e construir alternativas de mudança e reconstrução da utopia social ou da possibilidade humana.

Os DS se arriscam e avançam numa direção até então inusitada para a história das esquerdas. Arriscam-se para inovar e para produzir seu aggiornamento. Ao se arriscarem, podem estar apontando para uma nova concepção política. De qualquer maneira, a polarização ideológica ganha nova energia. A despeito das Cassandras que vaticinaram o fim da história.

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Rudá Ricci é sociólogo, coordenador do Instituto Cultiva e membro da Executiva Nacional do Fórum Brasil do Orçamento. Participou do 4º Congresso dos DS, em Florença, como convidado da direção do partido italiano.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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