Busca:     


Globalização e democracia cosmopolita

Alberto Aggio - Maio 2007
 

O planeta Terra já não é mais apenas um ente astronômico, mas também histórico. O que parecia ou era uma abstração logo se impõe a muitos como realidade nova, pouco conhecida, com a qual há que se conviver. O planeta Terra torna-se o território da humanidade (Octavio Ianni, 2000).

Existem diferentes visões e definições a respeito da globalização. Alguns analistas a consideram simplesmente como um fenômeno econômico que se reporta quase que exclusivamente à integração de mercados financeiros e comerciais. Outros procuram dar mais atenção aos aspectos relativos à dimensão de comunicação do fenômeno ou, então, a dimensões culturais, tecnológicas, migratórias ou ecológicas, para afiançarem a existência de um processo de interdependência mundial. Nesse emaranhado de referências há claramente ênfases e esquecimentos. As ênfases recaem nas dimensões acima mencionadas, enquanto muito pouca atenção é dispensada aos problemas relativos ao fluxo de mão-de-obra entre países e regiões ou aos diversos impactos que se podem observar na vida social das pessoas, na vida política das sociedades, bem como no plano da subjetividade.

Sabemos que o processo de mundialização se iniciou com a expansão da Europa Ocidental a partir dos séculos XV e XVI. Desde então esse processo, sob a égide do Ocidente europeu, imparável diante de quaisquer obstáculos, assumiu várias formas e modificou-se permanentemente com o passar do tempo. Foi o Ocidente que construiu as noções de Novo Mundo, Oriente, África, etc. Todas essas regiões do globo sofreram o impacto da expansão dos europeus e, depois, dos norte-americanos. Em todas elas estabeleceu-se uma dialética de conquista, destruição e antagonismo, ao mesmo tempo em que também se processaram aspectos de convergência, diversidade e integração. Em outras palavras, sabemos que esse processo agrediu, mutilou e até mesmo eliminou povos inteiros, com suas estruturas socioculturais e civilizatórias. Contudo, sabemos também que os povos dos vários lugares do mundo que foram impactados pelo mercantilismo, pelo colonialismo e pelo imperialismo sempre demonstraram capacidade de assimilar e traduzir em seu beneficio os elementos e características civilizatórias dos dominadores, inclusive para elaborar perspectivas de auto-afirmação e superação da sua situação de colonizado ou dominado.

Mas não é exclusivamente a esse processo histórico que nos referimos quando falamos de globalização. É importante lembrar que globalização é um termo que aparece e se fixa na linguagem contemporânea - primeiro, acadêmica e, depois, coloquial - nas últimas décadas do século XX. Refletindo sobre esse momento da História, há autores, como Samuel Huntington (1994), que vêem nos processos que sacudiram as duas últimas décadas do século XX, como o colapso e desaparecimento do "comunismo histórico" e a retomada da democracia política em várias partes do mundo, o embasamento conjuntural da globalização. Esta seria, portanto, o resultado e a expressão de uma nova "onda democratizante". Em outras palavras, a globalização estaria conectada à expansão da democracia pelo mundo.

Independentemente da validade ou não dessa interpretação, há um reconhecimento quase unânime de que o mundo e as pessoas dentro dele vivem uma situação nova. Numa palavra: a partir do estabelecimento da globalização, o mundo ficou menor, as distâncias assumiram outra perspectiva, e o contato entre os seres humanos se tornou muito mais efetivo do que antes. Como observou A. Giddens (2000), passamos a estar "em contato regular com outros que pensam diferentemente e vivem de forma distinta de nós".

Aprofundando a reflexão em torno das mudanças promovidas pela globalização e procurando ver suas potencialidades mais profundas em relação à história da humanidade, o sociólogo Octavio Ianni (2000), a partir de uma outra perspectiva, procurou definir a globalização como "um novo surto de universalização do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório". Para o saudoso sociólogo brasileiro, a globalização é um processo que simultaneamente "desafia, rompe, subordina, mutila, destrói ou recria outras formas sociais de vida e de trabalho, compreendendo modos de ser, pensar, agir, sentir e imaginar". Estabelecido esse processo, emergiria uma sociedade global que pode ser pensada, de acordo com Ianni, "como uma totalidade abrangente, complexa e contraditória". O desafio estaria, então, em compreender os traços e as características dessa nova realidade social, o que não é uma questão simples. Essa sociedade global é, em alguns lugares, evidente e inquestionável e, em outros, ao mesmo tempo incógnita, fugaz, invertebrada ou imaginária. Ela não pode ser definida como um processo de homogeneização e integração, sem ao mesmo tempo ser pensada também como uma sociedade de diferenciação e fragmentação. Octavio Ianni procura se aproximar ao máximo de uma compreensão dessa nova realidade, afirmando que:

a sociedade global está sendo tecida por relações, processos e estruturas de dominação e apropriação, integração e antagonismo, soberania e hegemonia. Trata-se de uma configuração histórica problemática, atravessada pelo desenvolvimento desigual, combinado e contraditório. [...] Desde o princípio, pois, a sociedade global traz no seu bojo as bases do seu movimento. Ela é necessariamente plural, múltipla, caleidoscópica (Ianni, 2000).

De forma mais ampla e também mais contundente, o filósofo espanhol Fernando Quesada (2004) construiu uma reflexão segundo a qual a globalização é um processo que tem realizado, até o momento, uma verdadeira ruptura no imaginário político que se construiu no mundo ocidental desde os inícios da modernidade, cuja base fundamental é a idéia do contrato social. Para Quesada, inclusive, se poderia também pensar que a globalização estaria abrindo as possibilidades de produção de "um novo imaginário político", que, com todos os problemas que possa vir a apresentar, ainda assim superaria tanto o longínquo imaginário político grego (baseado no pertencimento à pólis) quanto aquele aberto com a modernidade, a que nos referimos acima.

Este breve inventário não poderia deixar de resgatar a análise de dois grandes especialistas no tema, David Held e Antony McGrew. Estes autores (2001) entendem que se poderia pensar a globalização não como um artifício ardiloso e incompreensível, mas como algo bastante reconhecível. Na chave interpretativa desse dois investigadores, a globalização é, antes de mais nada, um termo que visa identificar "a escala ampliada, a magnitude crescente, a aceleração e o aprofundamento do impacto dos fluxos e padrões transcontinentais de interação social". Com ela alterou-se a escala da organização humana; a partir dela enlaçou-se todo o planeta, uma vez que as relações de poder expandiram-se por todo o seu traçado. Com a globalização evidenciou-se a dificuldade ou até o equívoco de se pensar separadamente os assuntos internos e externos dos países, em todos os âmbitos. Por essa razão, as principais tradições da política ocidental, tais como o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo, não conseguiram oferecer, até o momento, interpretações coerentes e tampouco respostas adequadas a um mundo marcado pela globalização.

De qualquer maneira, independentemente da definição que se queira dar à globalização, uma questão deve ser registrada como uma dimensão em nada irrelevante: sabemos que os impactos da globalização não são homogêneos e, por isso, em qualquer análise desse fenômeno, há que se observar sempre o grau e a magnitude de integração a ele de países, regiões ou mesmo grupos sociais. Em outras palavras, a globalização é efetivamente um processo irregular e não é vivida nem experimentada de maneira uniforme.

Não seria incorreto afirmar, portanto, que adentramos no século XXI sem termos uma definição da globalização ou da sociedade global que tenha alcançado condição de ortodoxia nos círculos acadêmicos. Em outras palavras, a globalização está em debate e não há consenso satisfatório sobre o seu significado.

No emaranhado das tentativas de definição sobre o que é a globalização - e nesse artigo apenas sugerimos algumas -, é possível identificar, de acordo com David Held e Antony McGrew (2001), duas grandes correntes de interpretação: os globalistas e os céticos. Os primeiros entendem que a globalização é um processo real e profundamente transformador; os segundos consideram exagerado esse diagnóstico e, por essa razão, afirmam que é bastante mais complicado compreender verdadeiramente as forças que estão modelando a sociedade atual e também as opções políticas que se apresentam no cenário mundial. Não é difícil reconhecer que essa disjuntiva entre globalistas e céticos expressa um dualismo bastante tosco e se baseia em interpretações contrapostas extraídas de argumentos e opiniões que, em muitos casos, podem ser entendidas como aproximáveis. Essa disjuntiva dá base, portanto, a uma configuração de dois tipos ideais, úteis do ponto de vista analítico e investigativo para indicar áreas de consenso e disputa em torno da questão central, a globalização.

Apesar das suas imensas diferenças - que mencionaremos em seguida -, ambos os lados compartilham algumas avaliações comuns a respeito da realidade atual. Seguindo a Held e a McGrew (2001), podemos destacar pelo menos cinco pontos de convergência: [1] ambos consideram que, nas últimas décadas, ocorreu um notável crescimento da interconexão econômica dentro das regiões e entre elas, ainda que com conseqüências multilaterais e desiguais em diferentes comunidades; [2] a competição (política, econômica e global) inter-regional e global desafia as velhas hierarquias e gera novas desigualdades de riqueza, poder, privilégio e conhecimento; [3] os problemas transnacionais e transfronteiriços, tais como a extensão da produção de alimentos geneticamente modificados, a lavagem de dinheiro e o terrorismo global, têm demandado crescente protagonismo, colocando em questão diversos aspectos do papel, das funções e das instituições tradicionais de prestação de contas dos governos nacionais; (4) expandiu-se a governança internacional nos âmbitos regional e global - da União Européia à OMC -, o que coloca importantes questões normativas sobre o tipo de ordem mundial que se está construindo e quais são os interesses a que ela serve; e [5] esses desenvolvimentos exigem novas maneiras de pensar sobre a política, a economia e a mudança cultural; exigem também respostas imaginativas por parte dos políticos e dos gestores sobre as futuras possibilidades e formas de regulação política efetiva e de controle democrático.

Apesar do reconhecimento, por parte dessas duas correntes, de que existe um processo agudo e profundo de mundialização, seria importante, contudo, demarcarmos as diferenças entre globalistas e céticos, pelo menos no que se refere aos elementos centrais da divergência entre ambos.

Para os céticos, o que se entende por globalização não é mais do que um conjunto de processos de internacionalização, isto é, um crescente vínculo entre economias e sociedades nacionais essencialmente distintas, de regionalização e de "triadização", ou seja, de agrupamentos geográficos e econômicos transfronteiriços que estruturam atualmente os pólos econômicos mundiais hegemonizados por EUA, Europa e Japão. Os céticos chamam a atenção para o fato de que a história da humanidade já vivenciou processos como esses e argumentam também que há um claro descompasso entre o discurso da globalização e um mundo no qual a maior parte da vida cotidiana das pessoas está dominada por circunstâncias nacionais e locais. Por fim, para os céticos, a globalização é uma construção mitológica necessária no sentido de "justificar e legitimar o processo global neoliberal, ou seja, a criação de um mercado livre global e a consolidação do capitalismo anglo-americano nas principais regiões econômicas do mundo" (Held & Mcgrew, 2003).

Em termos gerais, essa visão é compartilhada por alguns pensadores marxistas, para os quais a globalização é uma nova forma de imperialismo, fundada nas necessidades e nas exigências do capital financeiro central e garantida pelos mecanismos de controle e vigilância multinacionais (G7, Banco Mundial, etc.). Na situação atual, alguns intérpretes que comungam potentes críticas à globalização afirmam categoricamente que a nova ordem mundial não se sustentaria sem a hegemonia norte-americana e que a globalização não é outra coisa senão a ameaça de "americanização" integral do planeta.

Além das objeções acima apresentadas, é possível também recolher visões surpreendentemente mais radicais contra a globalização. Segundo George Soros (2002), um homem que fez fortuna com a especulação financeira mundial, a globalização anulou os avanços alcançados pelo Estado de bem-estar social, deixando milhões de pessoas sem uma proteção razoável. Além disso, a globalização é, para ele, extraordinariamente perversa porque permite aos capitais um movimento inaudito ao redor do mundo, enquanto cria imensas dificuldades para o movimento das pessoas. A globalização concentra riquezas e, por isso, distribui mal os recursos. Enfim, para Soros, a globalização cria um cenário de insegurança e, mais do que isso, está baseada em mercados financeiros globais fortemente propensos a crises descontroladas.

A todas essas visões os globalistas respondem por meio de vários argumentos, procurando rechaçar a afirmação segundo a qual globalização é sinônimo de americanização ou de imperialismo ocidental. Para esses, a globalização é resultado de mudanças estruturais mais profundas na escala da organização social moderna. Essas transformações teriam sido causadas por desenvolvimentos em diversas dimensões da atividade humana, o que permitiu um crescimento sem precedente das corporações multinacionais e dos mercados financeiros mundiais, bem como uma ampliação tanto da difusão da cultura popular quanto da importância da atenção em relação à degradação do meio ambiente. Por outro lado, para os globalistas, o enfoque espacial é essencial na compreensão do fenômeno da globalização. Divergindo dos críticos da globalização, os globalistas entendem que é necessário ver as atividades e relações que estruturam a escala inter-regional e intercontinental, e não apenas a escala local e nacional; todas elas devem ser vistas não em termos hierárquicos e excludentes, mas sim nas inter-relações entre essas diferentes escalas, consideradas de maneira fluida e dinâmica.

Não somente a dimensão espacial-geográfica é importante para os globalistas. Eles pensam também a partir da História, a partir da idéia da "longa duração", ou seja, da perspectiva dos padrões de longo alcance para a mudança histórica secular. Em outras palavras, "para se compreender a globalização é preciso localizá-la no contexto das tendências seculares do desenvolvimento histórico mundial" (Held & Mcgrew, 2003). Assim, é preciso compreender as fases desse desenvolvimento e suas diferenças, suas formas históricas distintas.

Nesse sentido, de acordo com Held & Mcgrew (2003), deve-se verificar "como variaram os padrões da globalização ao longo do tempo para se poder assim estabelecer o que é o mais característico da fase atual". Por essa razão, os globalistas procuram enfatizar as investigações em torno de três aspectos principais: [1] as transformações que ocorrem nos padrões tradicionais de organização socioeconômica; [2] as transformações frente aos princípios territoriais estabelecidos; e [3] as transformações na esfera do poder. Esse último aspecto é, por assim, dizer, a preocupação mais forte dos globalistas. O que se quer nesse último ponto é compreender essencialmente sua instrumentalização, sua configuração e distribuição, e seu impacto. Daí a razão pela qual um dos núcleos essenciais da discussão dos globalistas ser a busca dos vínculos entre as idéias de governança democrática e cidadania global.

Como dissemos acima, o debate em torno da globalização não se esgotou nem tampouco foi cancelado. Se considerarmos a globalização como um fenômeno complexo, cheio de nuances ou possibilidades, e não como algo estabelecido pelo padrão geral da chamada globalização econômica, que tem por base os fundamentos do neoliberalismo, poderíamos supor uma perspectiva ou uma estratégia de ação que enfrentasse os desafios colocados por essa nova fase. Assim, antes do brado "um outro mundo é possível", o reconhecimento da existência da globalização demandaria uma indagação formulada em outros termos: "é possível uma outra globalização?"

As indicações de David Held (2000) são, ao nosso ver, altamente sugestivas no sentido de apresentarmos uma rede de alternativas, pensadas não somente na perspectiva de se adaptar à globalização mas também na perspectiva de se refletir a respeito de novas formas de globalização ou de uma outra globalização. O pesquisador inglês sugere cinco encaminhamentos para a construção daquilo que ele conceitua como "concepção cosmopolita da democracia":

Em primeiro lugar, a regulação da volatilidade dos mercados financeiros internacionais e da busca especulativa de lucros a curto prazo. Isso poderia ser feito por meio do incremento substancial da regulação e da transparência das operações bancárias e financeiras, da aplicação de impostos que incidam sobre essas mesmas operações e sobre aquelas que envolvessem divisas internacionais. Essas medidas expressariam uma opção política pela retenção, por parte dos governos, do controle dos capitais e visariam forçar os mercados de curto prazo a concordarem com as intervenções democráticas na vida econômica. Claro está que essas medidas contraditam fortemente a globalização entendida a partir do ponto de vista neoliberal.

Em segundo lugar, em um plano também global, seria necessário construir novas formas de coordenação econômica. Seria fundamental a criação de uma nova entidade internacional de coordenação econômica, uma vez que no cenário atual predomina a fragmentação de políticas entre FMI, Banco Mundial, OECD e G7. Neste ponto, o essencial é o reconhecimento de que haja uma autoridade econômica internacional de coordenação que garanta e oriente as políticas econômicas já estabelecidas ou, então, seja capaz de implantar novas - estas últimas também demandando a presença das autoridades públicas na sua elaboração e reconhecimento.

De acordo com Held, é necessário, em terceiro lugar, ampliar a legislação no sentido de estabelecer um contrapeso aos custos impostos pelo mercado, tanto em termos ambientais quanto sociais. Entretanto, há que se ter sutileza nesse empreendimento, uma vez que se trata da alteração de normas de livre mercado e do sistema mundial de comércio para atuar no sentido da defesa tanto de objetivos de proteção social quanto de defesa do meio ambiente. O objetivo aqui é introduzir novas condições que potencializem investimentos e aumentem responsabilidades no interior do sistema econômico global, a fim de suprir e complementar acordos coletivos e medidas de bem-estar social, quer em âmbito nacional, quer regional. Enfim, é preciso construir um sistema que introduza a responsabilidade e a regulação nos mecanismos institucionais com o propósito de coordenar o investimento, a produção e o comércio. Em outras palavras, visa-se construir um novo pacto entre poder econômico, democracia e Estado de bem-estar social.

Em quarto lugar, há que se propor uma nova ordem internacional que considere a reversão do predomínio das grandes potências nos organismos institucionais globais, para que se possam adotar medidas que enfrentem a pobreza e os obstáculos ao desenvolvimento econômico, como, por exemplo, o cancelamento das dívidas dos países pobres, no sentido de se criar as bases para um fortalecimento do capitalismo global, resultante e compatível com a aplicação de uma série de procedimentos e mecanismos democráticos.

Por fim, estaria apontada a perspectiva de criação de um sistema de prestação de contas em escala global, que teria todas as condições de ser iniciado e aprofundado na União Européia, a partir da superação dos déficits democráticos que se estabeleceram no momento da sua organização. Esse movimento contaria efetivamente com uma maior valorização do Parlamento Europeu como órgão de tomada de decisões. No que se refere ao âmbito institucional mais global, haveria que se apresentar um projeto concreto de reestruturação do Conselho de Segurança das Nações Unidas para dar mais presença e poder aos países em desenvolvimento. Fariam parte também dessa estratégia de estabelecimento das bases iniciais de um governo mundial o melhoramento dos mecanismos de prestação de contas das entidades econômicas internacionais e/ou transnacionais e, da mesma maneira, o fortalecimento da capacidade, entre outras instituições, daquelas vinculadas à defesa dos direitos humanos.

O que nos apresenta David Held (2000), efetivamente, é uma perspectiva ativa de intervir na nova situação mundial marcada pela globalização, no sentido de preparar e de visualizar o cidadão como uma entidade não apenas nacional ou local, mas sem prescindir dessas dimensões. De acordo com Held, "no futuro, os cidadãos não apenas deverão ser cidadãos de suas próprias comunidades, mas das zonas em que vivem e também da própria ordem global. Devem participar de distintas comunidades políticas, de cidades e áreas subnacionais, de países, zonas supranacionais e redes globais mais amplas". Esse projeto cosmopolita, de acordo com Held, admite que, nos dias de hoje, já se iniciou o processo que procura desvincular a autoridade política legítima dos Estados e suas fronteiras estabelecidas, ao mesmo tempo que institui, no conjunto do país, formas legítimas de governo. Mas faz questão de agregar que essa dinâmica estará integrada ao projeto de democracia cosmopolita, desde que esse processo "esteja circunscrito a um extenso compromisso com os direitos e os deveres democráticos".

Entre céticos e globalistas, a proposta da democracia cosmopolita abre uma generosa alameda para a reflexão daqueles que pensam em superar as barreiras do presente. Imersos na globalização, pelo menos de uma coisa nós sabemos: ela não é a prefiguração de uma sociedade mundial harmoniosa, como muitos imaginaram ou ainda imaginam. Não é tampouco um processo universal de integração global desprovido de conflitos culturais e civilizatórios. Ampliando a interdependência, a globalização tanto pode abrigar futuras animosidades ou antagonismos como também engendrar a xenofobia ou alimentar políticas reacionárias. O desafio é imaginar que ela possa, ao contrário, unificar o gênero humano. E, nesse caso, a resposta somente pode advir de uma perspectiva democrática.

----------

Alberto Aggio é professor livre-docente de História da América da Unesp, campus de Franca, e autor, entre outros, de Democracia e socialismo: a experiência chilena (Annablume, 2002, 2ª. ed.) e co-organizador de Pensar o século XX, problemas políticos e história nacional na América Latina (Unesp, 2003).

----------

Referências bibliográficas

GIDDENS, Antony. O mundo em descontrole - o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000.

HELD, David & MCGREW, Antony. Globalización/antiglobalización - sobre la reconstrucción del orden mundial. Barcelona: Paidos, 2003.

HELD, David & MCGREW, Antony. Prós e contras da globalização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

HELD, David. "La globalización". In: MARTÍN, Jacques (ed.). Tercera vía o neoliberalismo? Icaria: Barcelona, 2000, p. 141-55.

HUNTINGTON, Samuel. A terceira onda. São Paulo: Ática, 1994.

IANNI, O. "Globalização e nova ordem internacional". In: AARÃO, D. e outros (org.). O século XX - o tempo das dúvidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 205-24.

QUESADA, Fernando. "Procesos de globalización: hacia um nuevo imaginário político". In: QUESADA, Fernando (ed.). Siglo XXI: um nuevo paradigma de la política? Barcelona: Anthropos; Palma de Mallorca: Universitat de les Illes Balears, 2004, p. 11-43.

SOROS, George. A globalização. Rio de Janeiro: Campus, 2002.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

  •