Data dos anos 1980 a constatação da falência dos aparelhos repressivos de Estado herdados da ditadura militar, incapazes de impor a lei nas periferias das grandes cidades. É desta época, 1981, a reportagem da revista
Veja, reeditada em 1994, sob a manchete "A guerra civil no Rio", que denunciava a chacina de duas mil pessoas na Baixada Fluminense.
Desde então, as mesmas forças polÃticas e intelectuais responsáveis pela redemocratização do paÃs se empenham na luta por justiça social e pela paz como remédios, mediatos e imediatos, para o controle da situação.
O diagnóstico destas forças responsabilizava exclusivamente as desigualdades sociais históricas pelo esgarçamento da sociabilidade urbana, apresentando como antÃdoto a promoção de polÃticas sociais de inclusão, tanto econômicas quanto educativo-culturais.
O balanço de mais de duas décadas de iniciativas nesta direção mostra que o diagnóstico era simplista: quanto mais avançam as polÃticas de equalização, econômicas ou educacionais, mais se agravam os problemas de segurança pública. Isto se deve ao fato de que o problema da violência tem também uma dimensão polÃtica tão relevante quanto a social - sobretudo em sua imbricação -, que radica no modo como o Estado é gerenciado pela classe polÃtica.
A dimensão polÃtica da crise do Estado brasileiro tem alcance maior do que se costuma imaginar, condicionando, por exemplo, as medidas econômicas compensatórias de combate à pobreza. Basta olharmos o cenário em que estas se desenvolvem por conta da inércia polÃtica dos últimos anos: uma economia quase estagnada há 27 anos, que dificulta a inclusão produtiva dos jovens e arrefece o impulso democratizador da ajuda monetária à s famÃlias, produzindo dependência estatal (curral eleitoral) ao invés de libertação pública (cidadania).
Por conta da mesma inércia, as polÃticas sociais são concebidas em termos quantitativos - mais matrÃculas escolares, auxÃlios, etc. -, falhando amiúde na qualidade, e a falta de controle delas é um dos mais importantes sintomas disso. No caso da educação, por exemplo, choca o fato de ter sido reduzida à cultura de massas de mercado, com sua glamurização da violência, seu consumismo insustentável e sua vulgarização ética, em meio ao simulacro polÃtico da "aprovação automática", contraface de seu fracasso propedêutico.
Enquanto as polÃticas públicas claudicam, por demagogia e inércia - apesar de seu elevado custo tributário (39% do PIB) -, a pujança "chinesa" da microeconomia das drogas, que anima e financia a rede de apoiadores do crime organizado, se junta ao apelo pop da cultura do submundo para criar a trilha sonora da bandidagem - avidamente consumida por suas vÃtimas. Diante destas complexas e poderosas engrenagens, o movimento "pela paz" soa como um falsete.
A cada barbárie sofrida, parece se aproximar a hora de superarmos este paradigma e o substituirmos por outro, que assuma a realidade da corrupção/alienação dos aparelhos repressivos de Estado como uma das causas primordiais do surto de violência das últimas décadas e uma das maiores fontes de injustiça social do paÃs.
Mas, para isto, será preciso virar a página dos mitos ideológicos edificados na pós-modernidade; entre eles o de que é possÃvel sociedade sem proibições. A pretexto de superar o conservadorismo, desconstruiu-se a autoridade, reduzida a "autoritarismo", e circunscreveu-se a idéia de prevenção aos limites da positividade educativo-cultural, apartando-a do sistema de sanções.
É preciso dizer, na perspectiva da "ética da responsabilidade" (Weber), que não é possÃvel educar sem reprimir, nem pacificar sem proteger. A educação é sempre, embora não apenas, um processo de repressão dos instintos (agressivos ou sexuais), baseada na sistemática disciplina da mente sobre o corpo, mesmo naquelas civilizações que educam seus jovens sob o princÃpio da harmonia entre natureza e cultura.
Precisamos redescobrir o óbvio: que reprimir é também prevenir, tanto em termos diretos, tirando de circulação marginais aliciadores de jovens, quanto em termos indiretos, (re)instituindo o princÃpio nodal de que não é possÃvel conviver em paz sem respeito aos limites ético-sociais pétreos dos direitos e deveres.  Não existe sociedade quando se quer ter apenas direitos.
Num paÃs onde quase 500 mil delinqüentes com mandatos de prisão vivem livres nas ruas - mais do que a população encarcerada, em torno de 400 mil -, a fala do Presidente da República em favor de mais gastos em educação e saúde como solução do problema só pode soar como hipocrisia ou miopia.
É hora de os brasileiros entenderem que a desordem das ruas não passa da contraface da desordem reinante no Estado e na ética dos donos do poder - a que Lula se incorporou -, legitimada pelo voto. A impunidade que nos agride embaixo é a mesma que lubrifica o jogo do poder e da riqueza em cima.
Não alcançaremos a paz se não restaurarmos a ordem republicana, e esta não está nas cogitações dos que prosperam à custa de nossos impostos, de costas para nossa desgraça coletiva.
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Hamilton Garcia de Lima é sociólogo, cientista polÃtico e historiador.