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Tropa de elite contra os piratas

Luiz Eduardo Soares - Setembro 2007
 

O Rio de Janeiro foi tomado por uma febre contagiante: cópias piratas do filme Tropa de elite, de José Padilha, estão por toda parte. Não é força de expressão: outro dia, entreouvi a conversa de dois funcionários de um supermercado sobre situações e personagens do filme. Falavam com entusiasmo e se referiam a amigos, parentes e a redes capilares que se multiplicavam, velozes e vorazes: todos atrás de mais uma cópia, para mais uma sessão coletiva do filme, nas casas de uns e outros. Não havia sequer o sentimento de clandestinidade que cerca ações ilícitas. Ali, o entusiasmo era solar e o diálogo desinibido. Passei à área nobre do mesmo supermercado, em que fregueses de classe média lanchavam. O assunto era o mesmo. O tema obsessivo era um só. Tinham visto e veriam de novo, naquela noite. Comentavam detalhes com a vibração de um fla-flu.

Naquele início de noite, eu vinha da Baixada fluminense, onde o DVD pirata não só era comercializado, em cada esquina, como exibido em TVs portáteis. As cenas eram acompanhadas em silêncio, com máxima atenção, por pedestres que se apertavam em torno das telinhas. Passei por Vila Valqueire, Bangu, Jacarepaguá. A conversa era uma só. Dos presídios, chegavam informes: Tropa é um sucesso total. Já me disseram que, em bairros distantes, cópias já circulam em videoclubes. Policiais, estudantes, o time do Fluminense: sessões se sucedem. Estive em Campinas para uma palestra e, nas perguntas, adivinhem qual era o tema? Abro a porta para receber um documento do motoboy e o rapaz, rápido no gatilho: o senhor viu o filme? Já não é mais necessário dizer qual é o filme. Tropa virou "O Filme".

Mas vejam bem, o tema onipresente, o assunto que fascina e se impõe, atravessando classes sociais e faixas etárias, como eu nunca vira antes, não é a pirataria, mas o filme.

O primeiro impulso de alguém sensato e bem intencionado, respeitoso da legalidade e do trabalho alheio, seria, naturalmente, chamar a polícia, denunciar o esbulho, apontar cada ponto de venda, cada ostentação de desprezo pela propriedade. Entretanto, o segundo impulso dessa pessoa sensata sustaria o movimento inicial: como conter a pandemia? Como conter a proliferação torrencial? Ainda que todas as cópias fossem apreendidas, quantas haveria amanhã, sobrevalorizadas pela razzia da véspera? Cada residência é matriz potencial da reprodução ilegal. O filme - ou sua presente versão - está na internet. E quando o autor declara que a presente versão não é a definitiva, torna-a ainda mais atraente, porque difunde a informação de que, em breve, será moeda rara. Além disso, o que os consumidores querem ver não é a versão do autor, é o filme de que todos falam, é o filme que está por aí, é "O" filme. Uma vez instalada, a dinâmica pirata acompanha as sinapses sociais - nada a contém.

O extraordinário nisso tudo é a natureza paradoxal da situação: um sucesso nunca visto convive com perspectivas assustadoras de fracasso - perda substancial de público e, portanto, de renda. A pirataria está aí, lúgubre e corrosiva: roubo praticado contra um patrimônio que eu sei muito bem quanto custou, em trabalho, dedicação e investimentos, ao diretor, José Padilha, e aos produtores.

Tristeza e alegria. Muito a celebrar, porque o filme, de algum modo, tocou um nervo central da alma popular. E a lamentar: porque já não há sequer escrúpulos para expropriar o alheio.

Que lição se extrai disso tudo? Não saberia dizer, no calor da hora, mas ousaria sugerir que o drama social de que todos somos protagonistas perece indicar que teremos de rever os conceitos de propriedade intelectual, as normas destinadas a protegê-la e os mecanismos institucionais constituídos para implementá-las. Leis contrárias ao fluxo histórico, mesmo justas, em tese, não são aplicáveis, e a inaplicabilidade torna-as irrealistas e contraproducentes - e, nesse sentido, incongruentes com a própria Justiça. Contraproducentes porque, por sua existência meramente formal, estariam bloqueando alternativas mais aptas a combinar princípios aceitáveis com práticas viáveis. O que a pirataria desenfreada a que assistimos, perplexos, pelo menos no Rio, está a mostrar é, em primeiro lugar, a desproporção entre a tibieza artificial da norma restritiva e a potência dos meios eletrônicos de reprodução; e, em segundo lugar, é a impotência da polícia ante a força do mercado.

Claro que o primeiro culpado pode ser encontrado - aliás, já foi identificado e indiciado. Trabalhava para uma empresa responsável pela adição de legendas ao filme. A origem foi rastreada. Mas de que serve essa prisão, ante a tsunami das ruas? A polícia não pode ser culpada por uma tarefa irrealizável - acontece com os DVDs o mesmo que ocorre na economia das drogas. Havendo disposição ativa para o consumo, como conter a oferta?

Parece que estamos diante de uma questão muito mais profunda e delicada. Há, como diria o velho Marx, uma contradição entre o estágio de desenvolvimento tecnológico universalmente acessível e o princípio da propriedade de bens imateriais. Na era da reprodutibilidade hipertrofiada e elevada ao paroxismo no universo virtual, é cada vez menos provável que as formas tradicionais de proteção da propriedade intelectual possam ser aplicadas. Sendo assim, não se trata de tentar frear o processo, o que seria patético e, de resto, inútil, mas de redefinir os termos da autoria e dos direitos que encerra, na expectativa realista de que a criatividade dos agentes econômicos reinvente - como ocorreu outras vezes - meios de transformar os vícios privados da pirataria nas virtudes públicas dos ganhos para todos - respeitando-se, claro, o trabalho e o investimento dos autores.

Talvez, no futuro, vários produtos comerciais deixem de sê-lo, mas serviços e novos produtos-meio emerjam, gerando condições de retribuição aos autores. Pode ser que, no futuro próximo, o retorno deixe de depender da venda de bilhetes e de produtos derivados, como DVDs, e se apóie, mais e mais, na agregação de valor derivada da própria aprovação popular, traduzida em interesse do consumidor-espectador. Se fosse assim e se já vivêssemos esse mundo alternativo, o retorno de Tropa de elite aos autores e produtores já estaria assegurado, não apesar de, mas graças ao interesse que suscita. Por isso, talvez seja necessário proclamar o seguinte: preparemos esse futuro, desde já, ou morreremos na praia, contemplando o triunfo dos piratas.

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Luiz Eduardo Soares é o autor, junto com André Batista e Rodrigo Pimentel, do livro Elite da tropa (Rio de Janeiro: Objetiva, 2006).



Fonte: Gramsci e o Brasil & Blog de Época.

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