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O dia em que nasceu o século XX

Bruno Gravagnuolo - Outubro 2007
Tradução: A. Veiga Fialho
 

Era inevitável a Revolução de Outubro? Boa e velha pergunta, além de título de um famoso ensaio de Medvedev anterior a 1989 e publicado pela Ed. Riuniti, na Itália, numa bela edição com uma "folha de guarda" vermelha [1]. O ensaio em questão, na realidade, baseava-se mais na "guerra civil" subseqüente a 25 de outubro (7 de novembro no nosso calendário) do que na pergunta supramencionada. Mas, apesar disso, esta era recolocada com vigor.

Tese revisionista de Medvedev: "Os eventos oscilaram até o final". E, sobretudo, não era de modo algum necessário o epílogo catastrófico da "guerra civil", que, por sua vez, marcou indelevelmente a identidade e a estrutura do Estado bolchevique em sentido totalitário, malgrado as correções trazidas por Lenin em 1921 com a Nova Política Econômica. Em síntese - dizia o historiador -, uma outra revolução era possível, e aquele tipo de Revolução não necessariamente "devia" ser o que depois viria a ser.

Hoje, simultaneamente ao nonagésimo aniversário daqueles eventos, um outro estudioso enfrenta o problema: Marcello Flores, historiador de Siena. Autor de livros importantes sobre o século XX e, particularmente, sobre a violência do século, como Il Secolo Mondo (Bolonha, 2002), Tutta la violenza di un secolo (Milão, 2005) e Il genocidio degli armeni (Bolonha, 2006). Historiador, pois, que trabalha com uma dimensão comparada e faz uso de instrumentos "moleculares": a música, o imaginário, a iconografia, a linguagem comum. Além das fontes de arquivo, naturalmente.

E desta vez Flores aborda exatamente, num breve ensaio, o "evento singular": a tomada de poder bolchevique. No convulsionado dia político de 25 de outubro de 1917, entre o Instituto Smolny, sede dos sovietes e do Congresso Pan-Russo, e o Palácio de Inverno, o Palácio das Táurides e os outros lugares do drama disseminados numa distraída Petrogrado, de modo algum eletrizada ou envolvida, ao contrário do que nos foi transmitido pela lenda do Outubro, de Eisenstein.

O pequeno livro de Flores intitula-se 1917, la Rivoluzione (Ed. Einaudi) e também traz uma útil cronologia dos fatos decisivos para compreender o evento. Seu valor é exatamente este: circunscrever a narrativa à ruptura de um equilíbrio, o do "dualismo de poder". Um equilíbrio difundido depois que a "revolução de fevereiro" - com o fim do czarismo - estabelecera, precisamente, o nascimento de dois centros de legitimação: o governo provisório, expressão da Duma, por um lado, e a assembléia pan-russa dos sovietes (de fábrica, circunscrições e distritos camponeses), por outro.

Poderes equilibrados, reciprocamente hostis mas também contaminados, uma vez que tanto num como noutro havia mencheviques, socialistas revolucionários e trabalhistas (como Kerenski). Um pacto instável e não resolvido, que expunha o governo ao controle dos sovietes e punha os sovietes sob a ameaça do governo provisório, pressionado internamente pelas forças militares decididas a continuar a guerra de 1914-1918, junto com a Entente. Além disso, tinham grande peso específico os liberais (os "cadetes") no governo e obviamente os bolcheviques, capazes progressivamente de hegemonizar e dirigir maiorias "soviéticas" cada vez mais infiltradas e dominadas pelas suas palavras de ordem.

O acordo entre os dois poderes não era um acordo constitucional, no sentido de "constitucionalizado", mas sim ligado à emergência de uma situação muito fluida, que exigia uma resolução definitiva. Enquanto isso, como pano de fundo, faziam-se sentir fortemente os problemas não resolvidos. A guerra, a fome, a anarquia social e as expectativas de reforma agrária já em movimento com as reformas esboçadas pelo ministro Stolipin, morto num atentado em 1911.

Situação impossível, pois, e aberta. E o mérito do livro de Flores é precisamente traçar um instantâneo móvel, fluido e animado por uma "trilha sonora". Os rumores do Smolny, certamente. Com o estampido dos fuzis no pavimento, os gritos e os furores repentinos diante do aparecimento, a partir do subterrâneo daquele colégio feminino, de gente como Lenin, Trotski, Kamenev. E, em seguida, as bandeiras vermelhas, as canções, da "Marselhesa operária", típica da atmosfera de fevereiro, à "Internacional", disputada entre mencheviques e bolcheviques. Além disso, os carros blindados, as páginas de jornais, o cinema de então e a iconologia dos heróis. Por um breve momento o próprio Kerenski e sua "santa Rússia laica" foram exaltados.

Repita-se, tudo era muito mais quotidiano e normal do que possamos hoje imaginar, em comparação com o que aconteceria depois, com a guerra civil, os fuzilamentos e as expropriações, especialmente no campo (expropriações de gêneros alimentícios).

E no entanto, entre aqueles palácios e a enseada da qual o cruzador Aurora faz seus disparos no amanhecer do dia 25 de outubro, o drama político "em aberto" se conclui. Acontecem algumas coisas. Primeiro: a polarização entre as camadas sociais, verkhy e nitsi, camadas altas e baixas. Uma contraposição que empurra até os moderados para posições extremas e os obriga a escolher "existencialmente" uma barricada. Em seguida: o acirramento de uma situação insustentável, carregada de expectativas. Não se compreende nem se decide quem tem o poder de continuar a guerra ou de a ela pôr fim. E tudo isso enquanto as guarnições se rebelam e o próprio poder de decisão militar passa às mãos do Soviete de Petrogrado, num acordo de que participa o próprio governo provisório.

Mais ainda: duas tentativas de golpes de Estado. O de Kornilov, bloqueado pelos bolcheviques convocados pelo próprio Kerenski, que os pusera fora da lei. E o dos bolcheviques, afinal abortado. Sem falar que, desde fevereiro, depois do famoso "segundo domingo sangrento", tinha havido a abdicação de Nicolau II, a renúncia do seu irmão, o grão-duque Alexei, o governo do príncipe Lvov, o governo de Kerenski, a demissão de ministros da Guerra. E revoltas, tiroteios, a expulsão dos sovietes do Palácio das Táurides. Numa cidade sem víveres e sem combustível.

Até que a situação precipita, precisamente segundo as diretrizes sapientemente construídas por Lenin, de volta da Finlândia, e proclamadas pelas "Teses de abril": todo o poder aos sovietes, paz sem anexações, terra aos camponeses.

A habilidade de Lenin, contrariamente à passividade de outros bolcheviques, reside nisso: em acolher a radicalização. Favorecê-la e tornar-se porta-voz de um princípio de ordem. De um princípio decisório. Simples. Compreensível. Eficaz. Em vão os socialistas revolucionários e os mencheviques tentam dar uma forma linear ao processo, formulando a hipótese de um Soviete - no qual gradualmente ficam em minoria - como "governo de todos os socialistas de esquerda". O seu erro é querer evitar uma ruptura, tergiversar sobre a guerra, mas acima de tudo sobre a derrubada daquele governo Kerenski que reúne inúmeros socialistas de esquerda. É confiar numa passagem pacífica, democrática, a ser ratificada com o compromisso já obtido da "Assembléia Constituinte" (em seguida liquidada pelos bolcheviques). Naquelas condições catastróficas, impossível qualquer transição suave.

E é assim que os bolcheviquem "ditam" o ritmo. Com efeito, em 25 de outubro votam a ordem do dia sobre o governo unitário, mas ao mesmo tempo, e precedentemente, já ocupam os pontos estratégicos da cidade, graças ao Comando Militar do Soviete que "infiltraram". Os bolcheviques fazem uma coisa e outra. São emanação do Soviete, mas ao mesmo tempo o pressionam. De tal modo, depois de terem votado a moção unitária e assistido à saída, por protesto, dos mencheviques adversários, vão recolher - depositários únicos do poder - a herança de Kerenski, posto em fuga no mesmo dia.

Naturalmente, porque Lenin e os seus já depuseram pela força o governo provisório. E o voto unitário no Soviete é só a ratificação do acontecido: o fim de Kerenski. Ratificação inútil e secundária, por outro lado, porque o putsch já impusera sua lei.

Pergunta: foi putsch ou revolução? Uma pergunta também velha. Tratou-se de ambas as coisas. Foi revolução, porque a agitação vinha desde fevereiro e era apenas uma onda a ser canalizada. Coisa que os bolcheviques fizeram, aproveitando-se da indecisão alheia, uma vez que em política, e especialmente em situações como aquela, o vazio não existe.

Neste ponto, a revolução começa verdadeiramente, ou melhor, recomeça. Com os decretos sobre a paz, a terra e sobre os bancos e a indústria. Pouco a pouco Lenin aperta o cerco e marginaliza os atores secundários, mencheviques e socialistas. Abole a propriedade privada e "dá" a terra as camponeses, mas sem dizer como e "quanto". Remete ao arbítrio político a questão camponesa. O certo é que todo o campo passa ao controle da Tcheka e das suas requisições, voltadas para viabilizar o comunismo integral, depois o "de guerra", ligado à inevitável guerra civil suscitada pelo "jacobinismo contra O capital". Mais adiante, viriam Brest-Litovsk, a paz com os alemães e o cerco externo. Mas sem dúvida é Lenin quem imprime uma aceleração inaudita a todo o processo, na encruzilhada entre a vontade de instaurar a ordem e as "novas relações de produção" e as expectativas de revolução mundial.

O que foi este Outubro de 1917? Uma grande ruptura, certamente, da ordem global. Desencadeada, antes de mais nada, pela carnificina imperialista da Primeira Guerra Mundial, que alterava os equilíbrios multiétnicos czaristas. Ruptura com o exterior e ruptura interna, com polarização irremediável entre as camadas sociais e impossibilidade de uma mediação democrática, a não ser que os democratas tivessem podido barrar os bolcheviques, hegemonizando-os e depois, talvez, reprimindo-os. Mas, por fim, Outubro foi a reconstrução de um Império, com novas simbologias herdeiras das velhas. E uma taxa "midiática" e propagandística de religiosidade de massas, capaz de controlar massas semibárbaras, órfãs de uma velha ordem.

Precisamente por isso, Bertrand Russell falou de um "bolchevismo que aliava as características da Revolução Francesa às do nascimento do Islã". E Keynes falou até mesmo de um "Lenin que é um Maomé, não um Bismarck". Na realidade, assim como Maomé, Lenin foi também e em parte um Bismarck, quando, com Brest-Litovski, inseriu o Estado soviético na geopolítica mundial posterior a 1918.

E não obstante resta um fato, que hoje é mais do que uma percepção retrospectiva: outubro de 1917 foi a marca inaugural de uma bárbara emancipação de massas. Como herança renovada do czarismo, reprojetada dinamicamente para fora. Sinal mundial do fim de uma certa ordem imperial internacional. E imediata conseqüência libertadora - mas ao mesmo tempo repressiva - das expectativas que a Revolução, como "Mito" em ação, havia suscitado a partir de fevereiro de 1917.

Enfim, o Outubro bolchevique foi a edificação de uma Igreja mundial, que Stalin consolidaria como "fortaleza" com base na pulsão voluntarista e militar leniniana. Tal "Igreja" desencadearia processos de libertação e, ao mesmo tempo, os sufocaria. Evocaria também totalitarismos opostos, com conseqüências incalculáveis sobre a história de toda a humanidade. E, como diz Flores nas linhas finais, "com conseqüências incalculáveis para todo o movimento operário e a própria possibilidade e credibilidade do socialismo". Eis por que ainda vale a pena perguntar: a Revolução de Outubro, "aquela" revolução, era inevitável?

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Nota

[1] Roy Medvedev. Era inevitável a Revolução Russa? Tradução de Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.



Fonte: L’Unità, 25 out. 2007.

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