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Sobre a família Schucht em Moscou

Antonio Gramsci Jr. - Dezembro 2007
Tradução: Josimar Teixeira
 

Os dois textos abaixo foram publicados originalmente em L’Unità, respectivamente em 28 de julho e 20 de novembro de 2007. O primeiro nos dá notícia das circunstâncias em que aconteceu a recente morte de Giuliano (1926-2007), o filho mais novo de Giulia Schucht e Antonio Gramsci, em Moscou. Giuliano, cidadão russo, morreu no dia 23 de julho depois de ter levado uma vida discreta, distante da política e quase inteiramente absorvida pela música. O segundo polemiza com certas versões que ainda hoje pesam sobre a vida de Gramsci e a situação da família Schucht, especialmente no período carcerário, entre 1926 e 1937, mas não só nele. Trata-se talvez da mais importante contribuição, nestes últimos tempos, para o esclarecimento das relações entre Gramsci, o PCI e a URSS de Stalin, uma contribuição que deve ser ampliada substancialmente com o livro que se anuncia no segundo dos textos a seguir. Antonio Gramsci Jr. é filho de Giuliano e Zina (uma russa), e neto de Antonio e Giulia. Do mesmo autor, ver Amor e revolução.

Assim deixaram meu pai morrer 

Agora que tudo passou, ouço a voz de papai a me dizer: "Deixa pra lá, meu filho...", e eu lhe respondo: "Me desculpe, papai, não vou calar sobre certas coisas". Este diálogo aconteceu muitas vezes na nossa longa vida em comum. Ele, com seu espírito suave, incapaz de odiar seja quem fosse ou o que fosse, quase sempre freava meus violentos impulsos de rebelião contra as injustiças.

Quando foi levado ao primeiro hospital (hospital clínico central do ministério das Ferrovias), não queriam recebê-lo imediatamente porque ainda não tinham chegado os documentos com a confirmação do pagamento adiantado. Via os olhares frios e entediados das pessoas, insatisfeitas com o fato de que havíamos levado um doente tão grave justamente até elas. Enquanto isso, meu pai, febril e desidratado (um dia antes perdera a capacidade de engolir), esperava a clemência dos médicos no corredor frio e úmido, a dois passos da bem equipada unidade de reanimação. Cerca de meia-hora depois, os documentos chegaram e o corredor logo se iluminou com os sorrisos gentis e compassivos dos médicos.

O rosto deles espelhava a espiritualidade e a profundidade da alma russa tão bem descrita pelos nossos clássicos, e das quais nenhum outro povo se permite vangloriar.

Agora sabiam que iam conseguir dinheiro. Giuliano começou a receber todas as atenções necessárias. Depois de quatro dias de internação na unidade de terapia intensiva, papai começou a se sentir melhor: a febre passou, as funções vitais se estabilizaram. Decidiram interná-lo na unidade psicossomática do hospital clínico central do aparato do presidente, para se concentrarem nos seus males desta natureza.

Durante a transferência, Giuliano se sentiu mal: em Moscou fazia calor, e a viagem no leito da ambulância pelas famosas ruas russas, em grande velocidade, não é uma experiência agradável. Quando o veículo chegou ao destino, repetiu-se a mesma história horripilante: os médicos do hospital esperavam, impassíveis, a chegada da documentação necessária (tratava-se, como antes, da confirmação do pagamento adiantado) e nada fizeram para salvar Giuliano (a equipe da ambulância lutava corajosamente pela sua vida, mas não tinha todos os apetrechos necessários).

Desta vez, meu pai não resistiu. Morreu sufocado a poucos metros do aparelho de respiração artificial e de outros equipamentos de que tanto precisava. Infelizmente, eu o esperava numa outra seção, seguindo as indicações erradas do agente do seguro.

Encontrei meu pai assim que exalou o último suspiro, a tempo de lhe fechar os olhos. O pessoal do hospital preferiu sumir. O agente do seguro, responsável pela desordem com a documentação, me deu breves indicações sobre onde levar o corpo e em seguida partiu apressadamente. Os pobres médicos da ambulância, pessoas de valor, assumiram toda a responsabilidade pelo incidente e levaram Giuliano para o necrotério mais próximo. O funcionário a quem deveria entregar 1.600 euros pelo atendimento dos quatro dias anteriores desapareceu e ainda não voltou a dar as caras.

Assim funciona o sistema de saúde do nosso mágico país. Coisas impossíveis e impensáveis na União Soviética tornaram-se normas de vida na Rússia de hoje, onde o povo, sob o olhar vigilante do nosso bravo governo, ao ritmo de uma marcha vibrante, está recuperando a espiritualidade ortodoxa. Não quero abrir processo porque estou cansado e não posso ressuscitar meu pai. Conforta-me um pouco saber que papai foi esperto para escolher o momento justo de morrer quando ninguém podia perturbá-lo, porque estava cansado das inúmeras manipulações com seu corpo.

Agora finalmente reencontrou a paz pela qual tanto ansiou nestes últimos dois meses de sofrimentos.

Em nome de toda a nossa família, quero agradecer, de coração, à cara amiga Sandra Amurri, ao partido e a Piero Fassino [secretário dos DS, os Democratici di sinistra], que nos apoiaram neste momento difícil, e particularmente a Massimo D’Alema, que acompanhou pessoalmente os acontecimentos. Quero agradecer ainda aos amigos Giorgio Cisbani e Stefano Angelini, que organizaram imediatamente a ajuda ao meu pai. Quero expressar também o máximo reconhecimento a Vittorio Torrembini e à embaixada italiana em Moscou.

A disponibilidade deles me sentir a proximidade da minha Itália tão amada nestes dias de dor.

Os muitos erros sobre meu avô

A leitura do último livro de Bruno Vespa, L’amore e il potere, me trouxe uma autêntica alegria [1]. Tive a sensação de que o autor nutre a mais sincera simpatia pelo meu avô e por toda a nossa família, e isso não é pouco. Mas devo constatar que o texto não está isento de erros factuais e de interpretação de alguns eventos, devidos, a meu ver, ao fato de que se baseia nas afirmações de Massimo Caprara, superficiais e muito distantes da verdade histórica [2]. Quanto às relações de Gramsci com o partido e com Togliatti, às tentativas de libertação, etc., não posso dizer mais do que está escrito nos livros e ensaios dos maiores estudiosos de Gramsci, sobretudo Giuseppe Vacca e Silvio Pons, aos quais Vespa também se refere.

Mas também tenho muito a dizer sobre a vida da nossa família na Rússia, baseando-me na minha experiência pessoal, nas lembranças do meu pai e, sobretudo, em alguns documentos do nosso arquivo que ainda não são conhecidos na Itália. Estes documentos, dos quais alguns são verdadeiramente sensacionais, farão parte do livro sobre a família Schucht, que estou escrevendo junto com Silvio Pons e que será organizado por Giuseppe Vacca.

Antes de mais nada, devo dizer que não encontrei nenhum documento sobre a "mão de Stalin" que teria "golpeado" a família de Gramsci na Rússia. A partir do final dos anos vinte, em sintonia com o desenvolvimento geral do país, os Schuchts começaram a viver bastante bem. Apollon [pai de Giulia] recebeu um apartamento espaçoso perto do centro de Moscou e obteve uma aposentadoria especial. Ele carregava muitos "pecados": alemão de origem nobre, ex-emigrado, amigo de Lenin e, por fim, sogro do comunista italiano heterodoxo. Em 1933, este perfeito "inimigo do povo" morreu serenamente no hospital mais prestigioso da União Soviética, no Kremlin, assistido pelos parentes e por um pessoal atencioso.

Todos os membros da família, inclusive os meninos, Giuliano e Delio, iam até mesmo várias vezes por ano aos melhores estabelecimentos de saúde no Mar Negro e no Cáucaso. Nos anos trinta, quando já ninguém mais na família trabalhava, Giulia, sem que ninguém a impedisse, mandava regularmente a Tatiana [a cunhada de Gramsci, que havia ficado na Itália] somas consideráveis de dinheiro que serviam para assistir a Gramsci. De onde provinha este dinheiro? É pouco provável que se tratasse de economias da família e não podia nem mesmo ser dinheiro do PCI. Logo, a única hipótese plausível é que foram precisamente as autoridades soviéticas que tiveram o cuidado de aliviar os sofrimentos do "maldito trotskista" prisioneiro de Mussolini. Na falta de documentos, é difícil afirmar se o fizeram por sugestão de Togliatti ou de qualquer outro.

Mas será verdade que Gramsci era tão malvisto na União Soviética? Em 1926, Togliatti de fato fez chegar a Stalin a famosa carta de Gramsci? E, se o fez, por que durante sua permanência na Rússia demonstrou abertamente afeto e máxima atenção com Giulia e seus filhos, como também o fizeram todos os outros companheiros italianos que estavam então em Moscou? [3] 

Para mim a verdade está no meio. Por um lado, a divergência de Gramsci com o partido e com Togliatti, em particular, não era tão forte como dizem muitos historiadores; e, ainda que o fosse, em seguida seria pelo menos parcialmente "superada" (os conflitos de Gramsci com os companheiros de cárcere são coisa inteiramente diferente). Até o final dos anos quarenta e depois, graças também à habilidade de Togliatti, Gramsci permanecia no imaginário comunista tal como o recordavam desde os anos vinte, isto é, um leninista, perfeitamente sintonizado com o movimento comunista, tanto russo quanto italiano. Por isso, tenho muitas dúvidas sobre a plausibilidade da estranha pergunta que, segundo as recordações de Caprara, meu tio Delio teria feito aos companheiros italianos ("por que meu pai traiu vocês?").

Por outro lado, o panteão comunista precisava dos seus santos. A santidade pressupõe falta de pecados e martírio. E Antonio Gramsci se prestava perfeitamente a tal representação. (Togliatti talvez tenha exagerado nesta obra, atribuindo ao meu avó até uma origem humilde). Gramsci também passou à historiografia soviética com tal imagem: um comunista-herói que sacrificara sua vida pela luta contra o fascismo.

Só um círculo muito restrito conhecia seu pensamento. Trata-se de alguns intelectuais que podiam ler Gramsci na língua original, sobretudo Grezki (o primeiro tradutor de Gramsci), Irina Grigorieva e Ilia Levin. Por isso, parece-me inconsistente a afirmação de Gabriele Nissim, segundo quem "a mãe dos rapazes e a tia Eugênia levaram Delio e Giuliano a estudar o pensamento de Stalin em vez do pensamento do pai deles" [4]. Os rapazes não conheciam o italiano. Como podiam estudar o pensamento do pai, se a primeira publicação na União Soviética de alguns escritos de Gramsci só ocorreria nos anos cinqüenta?

Também não corresponde à verdade a afirmação de que as autoridades soviéticas bloqueassem a correspondência de Tatiana com os familiares. Esta hipótese talvez derive da falta de cartas de Tatiana aos familiares nos anos 1935-1938. Com as últimas descobertas no nosso arquivo consegui preencher esta lacuna e agora toda a correspondência desta mulher excepcional se apresenta na sua íntegra. Lendo estas cartas, não encontrei nada que comprovasse a tarefa secreta, confiada a Tatiana, de "vigiar" o cunhado na prisão. As preocupações de Tatiana eram outras: cuidar das condições de saúde de Antonio, obter sua libertação, reunificar a família e, depois da morte de Gramsci, salvar suas obras.

Tatiana escrevia livremente e sem reticências sobre todos estes temas, como se a dupla censura - a fascista e a soviética - não existisse. Mas será que existia mesmo? Ou talvez não fosse assim tão rígida, como se costuma pensar? Do mesmo modo sincero e desembaraçado foram escritas as cartas de todos os familiares de Tatiana - Giulia, Eugenia, Apollon e Giulia Grigorievna.

Nos últimos anos da vida de Antonio, toda a família discutia acaloradamente sobre a viagem sobre a viagem de Giulia à Itália. Segundo todos os documentos, as autoridades soviéticas não tinham nenhuma intenção de impedir esta iniciativa. A prova mais importante é a carta de Eugenia, a irmã mais rígida, a "mais bolchevique" de todos os Schuchts, inseparável de Giulia e, acima de tudo, desconfiada em relação a Gramsci. Nem mesmo ela era contrária a esta viagem e até escrevia que "era útil para ambos". Escreveu mesmo que "alguém sugeriu que convém a ela [a Giulia] mudar-se para a Itália". Tatiana, por seu turno, escrevia que a embaixada soviética "estava pronta para ajudar Giulia a se instalar em Roma".

O verdadeiro obstáculo, no entanto, residia na doença de Giulia. Ela sofria de epilepsia orgânica, complicação da gripe espanhola contraída em 1927 (e não de esgotamento nervoso, de que falam os biógrafos de Gramsci). Penso que Apollon aludisse precisamente a esta doença, e não a alguma misteriosa pressão exercida sobre a família, quando escrevia com irritação a Tatiana que "Giulia escreve raramente porque muitas vezes não tem possibilidade de escrever" (Tatiana desconhecia a doença da irmã mais nova até o início dos anos trinta, e ainda não está claro se deu esta notícia a Gramsci).

Apesar da doença, Giulia continuou a trabalhar no serviço secreto até 1930. Também sobre este seu trabalho formularam-se hipóteses fantasiosas. A mais absurda é a do historiador russo Leontiev, citada por Caprara. Segundo esta hipótese, Giulia foi enviada pelo NKVD para "seduzir" Gramsci e depois mantê-lo sob controle constante. Mas a história de amor entre ambos começou em 1922, quando Giulia era uma simples professora de música numa escola provincial de Ivanovo! É verdade, já havia começado sua carreira na seção local do partido bolchevique, mas isso não significa que fosse ao encontro de Gramsci a mando das autoridades soviéticas. E não há nada de estranho ou de maldoso no fato de que, depois do casamento, quando Giulia começou a ter acesso ao amplo círculo dos comunistas estrangeiros, tenha sido empregada pelo serviço secreto, que, com toda a probabilidade, lhe deu a função de controlar os ambientes do Komintern (por exemplo, fornecer informações sobre a infiltração de elementos subversivos, traduzir documentos interceptados, etc.).

Depois da morte de Gramsci, as autoridades soviéticas continuaram a tratar minha avó com o máximo respeito. Desde 1968 até a morte, acontecida em 1980, ela viveu com Eugenia em Peredelkino, num sanatório muito privilegiado para velhos bolcheviques, visitada freqüentemente pelas delegações dos comunistas italianos. Seus filhos, Delio e Giuliano, também não foram marginalizados pelo regime soviético. Delio seguiu uma brilhante carreira científico-militar; Giuliano, a carreira musical. Ambos (inclusive mulheres e filhos) tinham acesso às estruturas de saúde privilegiadas do PCUS.

Todo verão, o PCUS nos oferecia gratuitamente uma belíssima dacha perto de Moscou (antes de 1968, Giulia e Eugenia iam para lá). Quando em 1983 a família de Giuliano mudou de casa, as autoridades de Moscou concederam um aposento a mais para "a preparação do museu dos objetos pessoais e dos documentos de Antonio Gramsci" (em seguida, doamos quase todo o material ao Museo di Casa Gramsci, em Ghilarza, e à Fundação Instituto Gramsci). Portanto, não se pode falar da pobreza em que "sempre viveu a família", pelo menos no que diz respeito ao período soviético.

Alguns problemas começaram a se verificar nos anos noventa, durante a última grave crise econômica da União Soviética. Mas mesmo então, graças a alguns privilégios, a nossa família tinha condições de vida um pouco melhores do que a média. Para nós, o ano mais cruel foi 1992, quando o novo regime de Eltsin propiciou uma inflação vertiginosa, e nossa família, como muitas outras, perdeu quase todas as economias feitas nos anos anteriores. Mas nenhum de nós se deixou tomar pelo pânico, simplesmente começamos a trabalhar mais. Giuliano, até quase oitenta anos, ensinava ao mesmo tempo em duas escolas de música e no conservatório de Moscou. Seu esforço, e não o fato de ser filho de Antonio Gramsci, é que lhe permitiu manter um nível de vida digno, quando até mesmo muitos professores universitários iam vender jeans nas feiras de rua.

Em relação ao "abandono" da nossa família por parte do PCI e à atribulada história dos direitos de autor, temas que o sr. Vespa aborda de modo não inteiramente correto, falarei em outro lugar, por se tratar de questões de natureza totalmente diferente.

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[1] Bruno Vespa. L’amore e il potere. Da Rachele a Veronica, un secolo di storia italiana. Milão: Mondadori, 2007.

[2] De Massimo Caprara, veja-se, particularmente, Gramsci e i suoi carcerieri (Roma: Ares, 2001). Ex-secretário de Togliatti e com passagem pelo grupo de Il manifesto, uma dissidência do PCI no final dos anos 1960, Caprara aproximou-se da direita italiana e tem escrito vários livros ferozmente críticos em relação à tradição comunista. 

[3] Sobre a correspondência de 1926, em torno da crise do partido bolchevique, ver A. Gramsci. Escritos políticos. Organização, introdução e tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, v. 2, p. 383-402.

[4] O jornalista Gabriele Nissim escreveu recentemente Una bambina contro Stalin. L’italiana che lottò per la verità su suo padre (Milão: Mondadori, 2007), cujo tema é a vida de Luciana De Marchi e sua luta para descobrir a verdade sobre o fim trágico do pai, comunista refugiado na URSS ainda nos anos 1920 e aí fuzilado em 1938, depois de delatado inclusive por alguns companheiros de partido.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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