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Uma síndrome latino-americana: Eu, o supremo

Lúcio Flávio Pinto - Dezembro 2007
 

Paulo Autran, que se foi há pouco, imortalizou com sua superior arte teatral a grandeza de Glauber Rocha, que se foi há mais tempo, ao monologar com soberba sobre o absoluto, no ápice de Terra em transe, um dos melhores momentos da história do cinema, brilhante e meteórico como o próprio autor. A busca do absoluto é um vírus devastador para o organismo humano. Sua ação é nefasta tanto individualmente quanto para as coletividades, inclusive as enormes, de sociedades e países.

Há pessoas que só sabem abrir a boca para sentenciar. Processam, julgam e condenam com uma única frase, sem se sentirem obrigadas a desenvolver a demonstração da verdade. Eliminam do seu horizonte a complexidade humana, tendente ao relativo. Quando o que dizem ecoa e influi, induzem os totalitarismos: em estética, ciência ou política. Tanto mais nefastos quanto mais abrangentes são. O fascismo tem campo fecundo nesses absolutos, não refratários, exclusivistas, hiperbólicos, melifluamente barrocos.

Nosso continente sofre mais uma vaga de tendência absolutista, alimentada pela fanfarronice, pela sedução do único, do total, daquilo que Herbert Marcuse batizou de unidimensional. Seu germe mais próximo se manifesta atualmente pelo terceiro mandato de presidente, que funde a república à monarquia, a democracia formal e o despotismo de tipo oriental, a reação ao colonialismo num antiintelectualismo e anticulturalismo. O princípio do chefe, do eu-supremo. Que fala e fala e fala - e nada diz. Mas, como o mundo continua a girar e a Lusitana a rodar, é autorizado a continuar a falar, como se o mundo fosse impulsionado por sua voz, por suas locuções, hipérboles e metáforas.

Vendo a cena teatral da última Cúpula Ibero-Americana, realizada em Santiago do Chile, no mês passado, a inesquecível cena de Paulo Autran como um novo Dom Sebastião me veio imediatamente à memória, tão expressiva ela é do que somos. Maravilhoso Autran. Maravilhoso Glauber. Tão grandes como artistas que Chávez, Morales e Ortega se apresentam como réplicas, fantoches, embora reais, absurdamente reais.

Não que os espanhóis colonizadores, representados pelo primeiro-ministro Aznar e pelo rei Juan Carlos, se revelem heróis. Não são: seja pelo passado sangrento como pelo presente comercial. Mas ambos relativizam o passivo que representam pelo senso de uma decência universal e atemporal, que é a própria essência da civilização humana, a que é e a que tenta ser.

Nela, não cabem absolutos. Construir o mundo é difícil, mas é a nossa tarefa. Tão difícil que qualquer solução simplista, do bom contra o mau, do novo contra o velho, cobra um preço impagável: a da renúncia ao livre-arbítrio, aos próprios direitos. Transfere-se ao salvador um poder que sempre acaba se transformando numa fonte de tirania. E nada é mais anti-humano do que ela, como mostra a alegoria de Terra em transe, repetida como farsa no encontro do Chile.

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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006) e Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007).



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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