Nada mais adequado para um ano eleitoral, quando os governos das cidades serão renovados em todo o paÃs, do que refletir sobre as funções do poder polÃtico. Afinal, o que pretendem fazer com ele os milhares de candidatos que em breve estarão disputando os Executivos e Legislativos municipais? O que esperam deles os cidadãos que, direta ou indiretamente, em maior ou menor grau, sofrem ou se beneficiam com as decisões que passarão a ser tomadas após a posse dos eleitos? E como se dão, ou não se dão, o vÃnculo e o relacionamento entre estes dois pólos básicos da polÃtica, os governados e os governantes?
O poder polÃtico costuma ser visto como dotado de valor em si, isto é, como uma posição a partir da qual seu ocupante pode tudo, ou quase. Na tradução nacional, isto também significa, muitas vezes, estar acima da lei e ser indiferente à s expectativas sociais. Ou seja, um polÃtico é tratado, em geral, como alguém que trabalha intensamente por seus próprios interesses, quando muito os misturando com os interesses de alguns grupos, partidos ou regiões. Dificilmente se imagina que um polÃtico possa ser um recurso social fundamental, um articulador da sociedade, um personagem sem o qual a força se converte na principal ferramenta de resolução de conflitos e problemas.
Isso acontece por inúmeros motivos. Entre polÃticos e cidadãos existe uma espécie de abismo ético que dificulta que os segundos aceitem as razões usadas pelos primeiros para justificar muitas de suas condutas. Ajudam a aprofundar este abismo, além do mais, a má formação polÃtica das pessoas, a indiferença cÃvica dos cidadãos, a mediocridade ética de tantos polÃticos, a impotência programática dos partidos e, mais recentemente, a postura abertamente mercantil que passou a prevalecer na vida em geral.
No mundo de hoje, a maioria das decisões e atitudes cotidianas estão focadas no custo e numa espécie de prazer de curto prazo, importando pouco o sentido, o significado substantivo e o valor futuro dos bens. As eleições também se converteram em atos de compra-e-venda de votos. E os candidatos, animados por este mercado, agem de acordo com suas regras, esvaziando de sentido as mensagens com que buscam o apoio dos eleitores. Desapareceram assim os programas e os projetos de vida coletiva.
Muitos candidatos a prefeito - ou candidatos a candidatos, se considerarmos a fase atual -, por exemplo, costumam se apresentar como gerentes de cidades, bons administradores, tocadores de obras, empreendedores, porque imaginam que é isso que esperam deles os eleitores.
Não estão propriamente errados, pois é evidente que qualquer governante que se preze deve de fato ter estes atributos. Mas, ao assim se comportarem, desprezam a parte mais nobre da função polÃtica democrática (que é a de auxiliar a que uma comunidade modele a si mesma de forma justa e igualitária) e acabam por impulsionar a conversão dos cidadãos em "consumidores" e fiscais de decisões burocráticas. Perde-se o que a polÃtica tem de melhor, e os candidatos a estadistas terminam por ser reduzir, se forem competentes, a bons administradores. Ao final de seus mandatos, podem até deixar marcas de sua passagem pelo poder, mas pouco contribuem para modificar a face quente da comunidade.
Numa megalópole como São Paulo, dá para imaginar os estragos derivados desta postura. A cidade é um bólido que avança à s cegas, sem uma visão de futuro. Seus problemas se superpõem assustadoramente, desafiam a inteligência técnica e polÃtica, atormentam e angustiam, terminando quase por soterrar a força, a criatividade e o dinamismo dos moradores. Carece de discussões públicas consistentes e de ação organizada, que parece hoje confinada aos espaços em que a vida é mais dura e sofrida, onde a solidariedade e o apoio mútuo brotam como estratégia de sobrevivência. Com "gerentes" no comando, tudo isso fica bem mais difÃcil.
Os que desejam governar São Paulo não deveriam tentar pedir votos mediante a apresentação de currÃculos gerenciais ou de listas de soluções ad hoc. Além de buscar defender os interesses de um grupo ou partido e alterar a orientação dos governos anteriores, sua principal promessa deveria ser a de despertar a cidade vibrante e cheia de vida que parece anestesiada por seu próprio crescimento desorganizado, fazê-la falar, pensar e agir, alterando a correlação de forças polÃticas e sociais e refazendo o pacto social substantivo.
Haverá certamente quem se prontifique a advertir: ora, o poder municipal é essencialmente um poder administrativo, não cabe a ele contagiar os cidadãos com programas ou projetos "maximalistas", pouco pragmáticos, que não apresentam resultados práticos no curto prazo. As cidades estão aÃ, com seus problemas latejantes e imediatos, não querem saber de conversas filosóficas e utopias, precisam de ação e determinação.
Pode até ser, mas uma coisa não elimina a outra. Boa parte da fantasia polÃtica democrática sempre esteve voltada para unir interesses e opinião, balizando a tomada de decisões a partir de reflexões sobre o bem comum. O poder democrático apóia-se em um projeto destinado a tornar viável o governo do povo (a soberania popular) a partir de regras válidas para todos e de arranjos institucionais que facilitem tanto a livre competição polÃtica quanto a participação ampliada nos processos decisórios.
Toda polÃtica efetivamente democrática dispõe-se a criar condições para que os cidadãos controlem seus governos, participem deles e ponham em curso processos alargados de deliberação, de modo que se viabilizem lutas e discussões públicas em torno do viver e conviver. E nada disso pode ser alcançado sem generosas doses de utopia e ação reflexiva.
O poder que tem a cidade de modelar novas comunidades exige que aqueles que se disponham a governá-la possuam, mais que projetos dedicados à conquista do poder, um projeto de sociedade.
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Marco Aurélio Nogueira, professor de Teoria PolÃtica da Unesp/Araraquara, é autor, entre outros, de Em defesa da polÃtica (2001) e Um Estado para a sociedade civil (2004). Este texto também foi publicado em La Insignia.Â