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Para que serve o Partido Democrático

Alfredo Reichlin - Março 2008
Tradução: A. Veiga Fialho
 

A chamada "carta de valores" do Partido Democrático é um documento para ser arquivado ou pode representar o concreto início de uma reflexão sobre as razões de uma nova subjetividade político-cultural em que se efetive a grande história da esquerda na Itália? Ou será que desta história não resta mais nada?

Esta pergunta - confesso - há tempos está na minha cabeça e, acredito, também na cabeça de muitos companheiros. Estamos fazendo uma operação moderada - como nos acusa a extrema-esquerda - ou criando uma nova combinação de forças reformistas capaz de enfrentar não só Berlusconi mas também as questões do tempo? Podemos começar a romper o silêncio da esquerda destes anos e retomar a palavra, usando uma língua capaz de falar às novas gerações?

De per si, o documento apresenta evidentes limites. Mas o modo como foi elaborado já é um sinal de novidade. Nasceu de um trabalho complexo, difícil mas muito vivo, devido ao extraordinário esforço e à intensa participação daquelas cem pessoas, as mais diversas e em ampla medida desconhecidas umas das outras, que formavam a Comissão.

O que se devia entender por carta de valores? A resposta não estava dada antecipadamente. Porque o que pode ser uma carta - precisamente - "de valores" para um partido não ideológico, pluralista, de amplo espectro social e cultural, e, ainda por cima, nascido da confluência de histórias e culturas políticas não só diferentes mas que, por décadas, se combateram duramente? Evidentemente, não se devia tratar de um simples programa de governo. Era preciso começar a dar coesão ideal a algo que não é apenas uma aliança eleitoral, mas uma força organizada que se projeta num tempo longo e num mundo em transformação.

É verdade que havia um atalho. Podíamos ajeitar tudo num elenco abstrato de grandes princípios, sobre os quais todos mais ou menos pudessem estar de acordo. A nossa escolha foi diferente. O esforço que fizemos foi o de dar um fundamento histórico-político a este novo partido. E isso no sentido de indicar as razões reais, efetivas, de fundo, pelas quais o PD se torna historicamente necessário. E não para si mesmo apenas, segundo uma velha visão de parte (os partidos como "nomenclatura das classes"), mas para o país. Em síntese, encontrar o nexo ideal entre as razões ideais e as políticas. Se se quiser, definimos o "quem somos" não em abstrato, mas como conseqüência do "para que servimos" e de qual idéia da Itália e do mundo colocamos em campo.

Não sei em que medida conseguimos isso. Mas é nesta direção que tentamos apontar a proa de uma embarcação que deve navegar mares desconhecidos. Portanto, um trabalho aberto, em progresso, a ser continuado, cujo resultado deve ser inteiramente discutido e rediscutido, mas que já tem - parece-me - uma característica e uma virtude. Não é mais o somatório das velhas culturas de proveniência. É o núcleo de uma cultura política nova, a qual, partindo de uma visão não banal, e não economicista, da grande mudança que está em curso na Itália e no mundo, pode representar o terreno em que uma pluralidade de forças políticas e ideais reencontram não um compromisso menor ou uma abstrata lista de princípios, mas as razões novas, reais, para "estarem juntas". E isso na medida em que (e como conseqüência do fato de que) nenhuma das atuais forças que vêm do reformismo são capazes de, sozinhas, dar resposta aos desafios que temos diante de nós. É inacreditável que ainda haja quem - com 2% dos votos - pense em propor o comunismo.

É com base neste arcabouço histórico-político que enfrentamos vários nós problemáticos, inclusive a relação entre laicidade e religião. Penso que estabelecemos um marco firme neste tema. Está fora de questão o princípio da laicidade do Estado fiador dos direitos iguais e fundamento do pacto constitucional. Mas a pergunta nova e difícil que nos propusemos é se a função do pensamento laico moderno só pode ser a de afirmar e defender a igual dignidade das opiniões. Certamente, ai de nós se nos inclinássemos diante de certas pressões vaticanas. Mas, hoje, a cultura laica é só um método ou é um valor? Não estamos nos tempos de Cavour e, por isso, ela não pode permanecer na defensiva diante de questões novas que pedem atenção nem pode se escandalizar se o pensamento político, na sua autonomia, também se alimenta de novas idéias, valores, hipóteses, dúvidas, quer científicas, quer religiosas.

Todos devemos nos colocar numa atitude de escuta. E esta não é uma concessão aos "padres", visto que todos (crentes e não crentes) estamos diante de questões inéditas que nascem do âmago de uma sociedade inquieta. Acredito - e gostaria de dizê-lo a certos amigos - que fundir num mesmo partido progressista católicos democratas e herdeiros do socialismo é a maior contribuição que hoje se pode dar à causa de uma Itália livre e laica. Perguntem-no ao cardeal Riuni. Laicidade não é uma palavra alternativa à palavra "religiosidade", mas é alternativa às palavras "fundamentalismo", "fanatismo", "clericalismo" e, particularmente, a tudo aquilo que busque se valer das leis e das instituições para impor sua verdade e seus dogmas.

Daí toda a argumentação que percorre o documento acerca da necessidade um novo humanismo.

Eis então por que não um outro partido, mas um partido verdadeiramente novo e diferente. Uma força que, antes de mais nada, seja capaz de enfrentar o perigoso vazio de governo que atinge o sistema das relações entre os Estados. Uma força de estatuto europeu, dado que não se pode conceber nem é realista nenhum projeto de desenvolvimento da Itália se não for parte de um novo protagonismo da Europa, entendida na sua unidade, ou seja, como aquela realidade histórico-política que, só ela, pode dar resposta aos problemas prementes do rearmamento, do risco ambiental, das grandes emigrações, do advento de sociedades multiétnicas e multirreligiosas.

Afinal, qual é a idéia de progresso de que partimos? Como se pode pensar o desenvolvimento (o tema clássico da esquerda marxista, ou seja, apoiar-se no desenvolvimento das forças produtivas) a não ser em relação à existência de uma nova humanidade, com suas demandas e seus direitos, e, portanto, em relação ao fato de que o mundo se tornou uno, e "nós" estamos cada vez mais "neles" e "eles" cada vez mais em "nós"?

Não se trata de palavreado vazio. Talvez não se tenha compreendido que está mudando a própria natureza humana. E que aqui reside uma das razões fundamentais pelas quais a política, entendida como polis, isto é, como capacidade de orientar o caminho da sociedade, não mais pode ser a mesma de antes. Não mais pode depender de Mastella ou de velhos e estéreis extremistas. E acredito que, também por isso, adquire um grande significado o nome novo que nos demos. Porque a crise da democracia dos modernos é o tema dominante. Implica o questionamento daquilo que foi seu fundamento: o Estado-nação, cujas instituições e cujos velhos poderes garantiam não o consumidor, mas o cidadão, isto é, o titular de algo muito diferente do poder de compra: o titular de direitos universais. Esta é a verdade. Está em discussão a soberania popular, sem a qual as lutas sociais estão derrotadas de partida.

Não posso aqui resumir todos os temas abordados no documento. Enfatizo apenas o fato de que as razões de fundo de um partido novo consistem na necessidade de levar a resposta política a estes novos níveis. A verdade simples é que os partidos do século XX não são mais capazes de responder às novas demandas de sentido e de futuro.

Este é um fato. E as coisas estão assim porque, se partimos (como é necessário) não das velhas identidades que se formaram no século XX, mas da grande mudança do mundo e da sociedade humana que está em curso, não basta definir os partidos com base nas velhas posições entre direita e esquerda. Não sei se está claro que um partido político, hoje, deve ser capaz de enfrentar questões de caráter cultural e ideal, deve se expressar e se expor na questão dos valores, não mais pode ser um partido que só se ocupa "de política". O que é hoje a política senão a liberdade das mulheres, os direitos das pessoas, a igualdade efetiva das oportunidades, o peso do capital social e humano, o papel decisivo da cultura e da liberdade de pesquisa?

Afinal de contas, é preciso indicar uma idéia diversa de modelo social. Aquilo em que pensamos é uma sociedade aberta, na qual o trabalho não perde a centralidade porque a economia moderna requer não só a fadiga do trabalhador, mas sua inteligência. Mas é também a idéia da empresa que muda, uma empresa em que o dono não é o único que conta. Em essência, a integração social e a liberdade de escolher os próprios projetos de vida constituem a trama do documento. O desenvolvimento humano é a nossa idéia de fundo.

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Alfredo Reichlin foi membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do "governo sombra" daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Recentemente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da "Carta de valores" do PD (Partido Democrático). Dirige a Fondazione Cespe - Centro Studi di Politica Economica, em Roma.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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