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Por uma cultura política democrática

Clayton Romano - Abril 2008
 

Alberto Aggio. Uma nova cultura política. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2008. 146p.

Quase três décadas após ser deflagrado, ainda hoje pairam sérias dúvidas quanto à capacidade demonstrada pelo "processo de transição" no Brasil em consolidar uma cultura política democrática digna de tal adjetivação, com amplo lastro nas relações cotidianas da sociedade ou mesmo na condução das questões de Estado. Assim como, por exemplo, as noções de "consumismo", "pragmatismo" e "individualismo" oferecem caminhos promissores aos analistas interessados em estudar nossa época, "corrupção", "eleitoralismo", "privilégios" são os termos usualmente mobilizados para sintetizar a cultura política do nosso tempo, não sem razão.

Fundado na díade democratização política vs. democratização social, o progressivo distanciamento das massas em relação aos temas colocados no curso da consolidação democrática no país fez com que o sucesso desta se limitasse à eficácia na realização de pleitos eleitorais periódicos, enquanto indicadores apontam quedas sucessivas na evolução do apoio e satisfação dos brasileiros com a democracia.

O Latinobarómetro indica que, em 2007, apenas 30% dos brasileiros declararam-se satisfeitos com a democracia e apenas 43% apoiaram esse regime político. Assim, relegado aos profissionais da política e oportunistas de plantão, o exercício democrático raramente é visto nas praças, em bandeiras e vozes, restringindo-se cada vez mais aos apertados corredores dos shoppings.

E, se não há como afirmar de modo categórico a vigência de uma cultura política democrática substantiva, difundida em larga escala no interior da sociedade brasileira e de suas instituições, cabe indagar se também a esquerda e sua intelligentsia teriam abdicado daqueles valores democráticos tão ardentemente expressos há cerca de trinta anos.

A leitura deste livro permite aprofundar esta e outras questões. Aqui se reúnem temas, idéias e opiniões colecionados durante o difícil trajeto da consolidação democrática no país, muito embora boa parte dos artigos e ensaios selecionados não seja dedicada apenas ao contexto brasileiro. "Ao velho estilo - diz o autor - esse é um livro de intervenção intelectual e o seu foco preferencial é o mundo da política, mais especificamente a política de esquerda" (p. 11).

Arguto, Aggio abre mão de ortodoxias e atitudes de vanguarda para "simplesmente registrar o saldo de uma reflexão pautada no diálogo, nos questionamentos, debates e posicionamentos que fazem parte de uma trajetória de afirmação de valores e práticas em defesa da democracia no campo da esquerda" (p. 11).

É o saldo desse debate que, em cores vivas, se registra em cada um dos capítulos, nos quais se trata de personagens tão marcantes na política contemporânea, como Che e Chávez ou Allende e Pinochet. Há um espaço especial também para a importância das reflexões de Mariátegui e Gramsci, dois autores que, assimilados de alguma forma durante aquele arrebatador encontro entre comunistas e democracia, merecem sempre releituras criativas e férteis.

Bastante ilustrativo, o capítulo "A revolução, seu mito e a democracia" é o texto mais antigo do livro. Publicado originalmente em 1989, num suplemento dedicado à Revolução Francesa pelo jornal Voz da Unidade - vale lembrar, o periódico oficial do então Partido Comunista Brasileiro (PCB) -, nele o autor realiza "uma reflexão em torno do conceito de revolução, da mitologia que se formou em torno dele, e da relação nem sempre sincrônica e consonante que teve com o tema da democracia" (p. 52).

A partir da identificação do paradigma francês de 1789 como modelo "imaginário e prático do que é ou deveria ser uma revolução" e de sua presença marcante nos horizontes da cultura ocidental e da esquerda, Aggio destaca a representação mitológica criada em torno do fato revolucionário e demonstra como as "revoluções que se seguiram, vitoriosas ou fracassadas, buscaram ou realizaram uma atualização deste mito" (p. 53-4).

E, de maneira desconcertante, indaga: "Ora, precisamente num contexto de modernização vivido pelo Ocidente - do qual a Revolução Francesa foi, sem dúvida, um fato decisivo, mas também o foram (e o são) o capitalismo, a industrialização e a democracia política, todos, marcas indeléveis da modernidade - seria possível a vigência de uma revolução nos moldes do paradigma oitocentista?" (p. 57).

Convenhamos: se nos dias de hoje tal indagação ainda é capaz de causar arrepios em militantes da esquerda brasileira, o que pensar então do impacto causado há vinte anos? E, tal como em 1989, é preciso admitir que o gesto de afirmação da democracia como combustível da revolução no tempo presente permanece sem um ator à esquerda. Como uma alma sem corpo, a cultura política democrática perambula por entre a esquerda e seus partidos, sem no entanto ser incorporada integralmente por nenhum deles. Assim, a "revolução democrática" - essencial para a definitiva consolidação de uma cultura política democrática entre nós - segue apenas como uma possibilidade, não um fato.

Mas será possível construir uma cultura cívica democrática, como nos propõe Alberto Aggio em Uma nova cultura política, sem que haja um ator político que lhe dê forma e vazão? Enfim, será possível avançar na eliminação das desigualdades, no acesso ao mundo dos direitos, na promoção da cidadania e da justiça social, sem que haja um "intelectual coletivo" que organize a vontade coletiva das massas e seja legitimo portador de uma cultura política democrática? Com a palavra, a esquerda.

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Clayton Romano é mestre e doutorando em História na Unesp/Franca. Este texto também foi publicado em La Insignia.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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