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O menino maluquinho não era bobo

Luciano Oliveira - Abril 2008
 

Leio nos jornais que Ziraldo, um dos mais famosos cartunistas brasileiros - autor do Saci pererê que alegrou minha infância e do Menino maluquinho que alegrou a infância da minha filha -, vai ganhar mais de um milhão de reais e receber uma pensão até o fim dos seus dias pela perseguição que lhe moveu o regime militar há mais de trinta anos. A notícia talvez inspire o mais engraçado bufão da nova direita brasileira, Diogo Mainardi, a escrever que nesse caso só resta esperar que ele não viva muito... Brincadeira à parte, é lamentável que figuras do porte de Ziraldo Alves Pinto, cuja estatura cívica a minha geração tanto admirou, venham agora ingressar na fila de indenizados da ditadura no caixa do estado brasileiro.

O caso mais notável, para mim, é o de Carlos Heitor Cony, não apenas por ser um grande escritor, mas por ter sido, na minha recuada juventude - quando estava deixando de ler o Saci pererê -, autor de um livro histórico, O ato e o fato, no qual investia corajosamente contra o primeiro da série de Atos Institucionais que infelicitaram o país a partir de 1964. Por isso foi perseguido, preso e perdeu emprego. Mas também tornou-se o nosso Voltaire! A exclamação não contém nenhuma intenção irônica. É de admiração sincera pelo que pessoas como ele fizeram naqueles anos de chumbo. Mas também é para lembrar que, com isso, amealharam uma justa celebridade que se tornou parte da sua biografia e, mesmo que pareça mesquinho dizê-lo, do seu patrimônio...

Esclarecendo: houve naqueles anos muitas pessoas que tiveram sua vida pessoal e profissional destroçada pela violência da ditadura, e essas pessoas, ou seus familiares, merecem algum tipo de reparação pelo que sofreram. Cito um caso exemplar. Em 1976, em São Paulo, Manoel Fiel Filho, operário e militante do clandestino - mas jamais terrorista - Partido Comunista, foi preso e morreu sob tortura. A viúva, com uma filha pequena, teve de sustentar o lar destruído com um salário de cozinheira. Em casos como esse, numerosos e anônimos, só houve perda irreparável na vida dessas pessoas. No caso de personalidades como Ziraldo e Cony, houve também ganhos, porque o fato de terem se tornado personalidades deve-se, em parte pelo menos, à perseguição que sofreram.

Carlos Heitor não é apenas um bravo repórter que foi injustamente perseguido e teve sua vida estraçalhada. Não. Carlos é também Heitor Cony, o autor festejado de uma obra de referência na história política brasileira, O ato e o fato. É jornalista de sucesso, romancista consagrado e até membro da Academia Brasileira de Letras, onde toma chá com José Sarney - que na época em que foi perseguido, aliás, estava do lado dos perseguidores. Provavelmente não é nenhum milionário, mas não deve ter do que se queixar do imposto de renda que paga.

Com Ziraldo é a mesma coisa. Não se trata de nenhum pobre-diabo que teve uma carreira interrompida e mergulhou no poço sem fundo do anonimato. Não. Trata-se de um profissional reconhecido e bem sucedido, ostentando no peito várias medalhas, inclusive a de ter sido, ao lado de nomes como Henfil, Millôr e Jaguar (por sinal, outro indenizado), um dos inesquecíveis cartunistas do Pasquim que toda semana fustigava uma ditadura estúpida. Também não deve estar passando necessidades.

As críticas que têm surgido a essas indenizações e pensões vitalícias não diminuem o que essas pessoas fizeram, mas não há como esconder uma decepção. Nós acreditávamos que eles tinham prestado um serviço à nação por civismo. O reconhecimento é a retribuição que tínhamos a lhes dar. Agora, ao virem apresentar a conta, eles mesmos estragaram um pouco a nossa admiração.

Não se pode comparar casos como esses com o da viúva de Manoel Fiel Filho. Em 1997, finalmente, ela conseguiu na justiça uma indenização de 300 mil reais, com que comprou uma casa, e uma pensão de 900 reais por mês. A pensão de Cony é de 19 mil mensais. Na ponta do lápis, representa mais de vinte vezes o que recebe a viúva do operário. O Brasil continua o mesmo. O mesmíssimo. O Brasil e sua mesmice.

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Luciano Oliveira é professor da UFPE.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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