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Cidadania e experiência republicana no século XX

Michel Zaidan Filho - Maio 2008
 

O povo assistiu aquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada (Aristides Lobo).

O depoimento singelo, prestado ainda no calor na primeira hora republicana, sintetiza aspectos iniciais da experiência republicana no Brasil ao longo dos seus mais de 100 anos de existência entre nós. Senão, vejamos. Um primeiro aspecto dessa experiência diz respeito à forma da dominação burguesa implantada no país com a proclamação republicana. Que tipo de Estado e - a serviço de que interesses - foi construído o regime republicano no Brasil?

Para responder a esta pergunta, recorremos a uma poderosa imagem da ficção literária brasileira: uma certa passagem do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos.

Fabiano ia desprecatado, observando esses sinais e outros que se cruzavam, de viventes menores. Corcunda, parecia farejar o solo - e a caatinga deserta animava-se, os bichos que ali tinham passado voltavam, apareciam-lhe diante dos olhos miúdos.

Seguiu a direção que a égua havia tomado. Andara certa de cem braças, quando o cabresto de cabelo que trazia no ombro se enganchou num pé de quipá. Desembaraçou o cabresto, puxou o facão, pôs-se a cortar as quipás e as palmatórias que interrompiam a passagem.

Tinha feito estrago feio; a terra se cobria de palmas espinhosas. Deteve-se [...] e deu de cara com o soldado amarelo que, um ano antes, o levara à cadeia, onde ele agüentara uma surra e passara a noite. Baixou a arma. Aquilo durou um segundo. Menos: durou uma fração de segundos. Se houvesse durado mais tempo, o amarelo teria caído, esperneando na poeira, com o quengo rachado. Como o impulso que moveu o braço de Fabiano foi muito forte, o gesto que ele fez teria sido bastante para um homicídio, se outro impulso não lhe dirigisse o braço em sentido contrário. A lâmina parou de chofre, junto à cabeça do intruso, bem em cima do boné vermelho. A princípio o vaqueiro não compreendeu nada. Viu apenas que estava ali um inimigo.  De repente notou que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade. Sentiu um choque violento, deteve-se, o braço ficou irresoluto, bambo, inclinando-se para um lado e para outro.

[...] Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado criou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro.

- Governo é governo.

Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo.

"Governo é governo". Quem seria o "soldado amarelo", que apesar de frágil e covarde obriga Fabiano a recuar?

Um dos traços mais marcantes da formação do Estado no Brasil é certamente essa hipertrofia, a aparente autonomia que a máquina e seus aparelhos estatais parecem ter adquirido em nosso país. Mas por que a face impenetrável desse "Leviatã" de mil braços e mil olhos aparenta ser tão amedrontadora à maioria dos brasileiros, fazendo se sentirem cidadãos de segunda categoria ou meio cidadãos?

Essa característica atávica tem a ver com a forma, o meio, o caminho através do qual se constituiu o regime republicano. Ao contrário do ocorrido em outros países - e o principal exemplo na América Latina é, sem dúvida, o caso do Haiti -, a proclamação da República não se deu concomitantemente com a redistribuição da propriedade agrária, por meio de uma reforma radical (o famoso modelo jacobino, de que nos fala o filósofo italiano Antonio Gramsci).

E a abolição da escravatura, ela mesma, não foi obra exclusiva dos escravos ou dos grupos abolicionistas. Tivemos, com o advento da República, uma mudança de regime sem a devida incorporação à plena cidadania política e social da maior parte da população brasileira. Ou seja, ganhamos uma república de pés oligárquicos e cabeça liberal, com um enorme contingente de palhas e marginais, ou seja, pessoas deserdadas da fortuna e da sorte.

Esses aspectos antidemocráticos e antipopulares levaram muitos estudiosos da vida política brasileira a definiram a via do regime republicano entre nós como "prussiana", isto é, de cima para baixo, mediante uma conciliação entre as elites velhas e novas, deixando intocadas as relações de produção no campo e excluindo da vida política a maioria do povo brasileiro. Daí o caráter fechado, burocrático, onipotente do Estado no Brasil.

Outro traço correlato à hipertrofia do Estado é a recorrente criminalização da chamada questão social e dos movimentos sociais. Na melhor das hipóteses, podemos afirmar que o tratamento dispensado aos de baixo neste país tem sido as políticas de cooptação. Isto é, quando não se tenta cooptar (mesmo nos governos mais ou menos democráticos e populares) os movimentos sociais, a regra é a mais pura e simples repressão policial.

Num quadro de precária institucionalidade democrática, a afirmação das mais elementares liberdades civis por parte dos setores subalternos tem sido interpretada como uma ameaça direta à sobrevivência da ordem social dominante.

Aliás, é preciso acrescentar a este ranço anti-social do Estado republicano no Brasil a extrema fragilidade do quadro político-partidário e a inexistência de liberdade e autonomia sindicais. Na ausência assim de tais mecanismos de absorção e canalização das demandas sociais, qualquer manifestação de protesto ou insatisfação dos de baixo põe em risco a precária instabilidade das instituições políticas. De tão frágeis e instáveis, já houve quem dissesse mais de uma vez que no Brasil não existem propriamente partidos, mas guarda-chuvas, ônibus, frentes, etc.

Mas é necessário convir que, a despeito dessas limitações, a República inaugurou a época da explicitação dos conflitos sociais. As classes sociais não só se gestaram - elas próprias - no bojo da modernização capitalista (e depois monopolista) ocorrida durante o regime republicano, como se auto-reconheceram, num processo de construção de suas identidades ideológicas. O período republicano viu florescer as grandes ideologias modernas (o socialismo, o anarquismo, o comunismo, o catolicismo social, o trabalhismo, etc.), e, a partir delas, os grandes embates entre as diferentes classes sociais. O socialismo, o anarquismo, o comunismo, o trabalhismo, o catolicismo social são frutos da idade republicana no Brasil e permitiram, mal ou bem, a plena explicitação das contradições sociais. A República foi, e tem sido, o regime das lutas sociais por excelência.

A evolução da experiência republicana entre nós não modificou propriamente este quadro, mas exacerbou em grande medida suas principais características. A chamada "Revolução de 1930" elevou a uma potência infinita a hipertrofia do Estado, num processo de corporativização geral da sociedade brasileira. Absorveu, cooptando, os "intelectuais orgânicos" dos movimentos sociais. Se não descriminou a questão social, deu-lhe um tratamento burocrático, ascético, técnico-científico. E certamente acelerou muito o desenvolvimento do capitalismo no Brasil.

São dessa fase, aliás, dois fenômenos correlatos: a incorporação - pelo alto - de grandes massas ao sindicalismo burocrático do Estado; e a subordinação do pensamento social revolucionário à torrente avassaladora do nacionalismo. Com a Revolução de 1930, ser moderno, ser progressista, revolucionário era combater o latifúndio improdutivo no campo e a dominação imperialista na cidade, tudo em favor da panacéia da industrialização brasileira, do capitalismo nacional "autônomo".

O golpe militar de 1964 desfez - pela crítica das armas - muitas dessas ilusões. Mas, a despeito ou por causa mesmo de sua precária base política, o regime militar levou à frente um processo de modernização monopolista da economia sem igual. O Brasil dos anos 1980 não era mais um país terceiro-mundista, como nos anos 1960. Éramos então, um país monopolista, com uma economia dominada pelo capital financeiro e uma estrutura social altamente diferenciada.

No entanto, apesar do enorme desenvolvimento capitalista, era necessário admitir que a estrutura social do Brasil republicano era uma mistura de Índia com Bélgica. Se tínhamos, de um lado, um setor altamente informatizado da economia, com operários de alta qualificação profissional, de outro tínhamos uma extensa horda de "catadores de lixo", que alimentavam uma florescente indústria de adubos e papéis. Isto sem falar na crônica instabilidade e artificialidade do quadro político-partidário, num monstruoso aparelho estatal e na recorrente criminalização dos movimentos sociais.

A "Nova República", ao invés de redimir este quadro, só o agravou, frustrando a expectativa de mudança social e política do país. A precária aliança entre os liberais históricos e uma grande parte da esquerda, sob a direção dos primeiros, que pôs fim ao regime militar, foi incapaz de ultrapassar as primeiras eleições de 1985. A desestruturação e a instabilidade partidária só avançaram, de eleição a eleição, com o descrédito da população nos políticos. E o que foi mais sério: a evaporação do centro político (representado pelos dois maiores partidos do sistema político do país) que deram sustentação à transição.

A despeito da relativa institucionalização das liberdades democráticas, com o fim do processo constituinte, o enorme passivo social - representado pelos extensos setores sociais não representados politicamente e destituídos de qualquer tipo de cidadania - clamava por sua resolução, enquanto uma sofisticada indústria cultural buscava manipular esses setores para viabilizar projetos messiânicos e moralistas de salvação nacional. Nunca foram tão evidentes a fraqueza e a imensa crise do sistema partidário brasileiro. O populismo eletrônico - agora redivivo na figura do ex-presidente Fernando Collor de Melo - só tinha esta única e profunda significação.

A controversa eleição do presidente Fernando Collor de Melo, fruto da primeira campanha política profissionalizada no Brasil, representou um divisor de águas na agenda política do país. Com Collor de Melo, o Brasil assistiu, sobressaltado, à execução de um programa liberal na economia e fascista na política. Eleito por uma coligação fantasmagórica de partidos, o jovem presidente alagoano decidiu implantar a sua agenda de privatizações e abertura econômica a golpes de medidas provisórias e ataques sistemáticos aos direitos e às organizações sindicais de trabalhadores - além de querer afrontar o Congresso com suas medidas, sem nenhuma negociação. Foi deposto.

Apesar do impedimento do ex-presidente, sua agenda veio para ficar e foi plenamente executada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, que inaugurou a chamada "reforma do Estado", sob pretexto de imprimir mais eficácia às políticas públicas e aumentar a poupança, através de investimentos externos, para financiamento da atividade econômica do país. Paradoxalmente, quanto mais se fez a redução do papel do Estado na economia brasileira, mais se exortou a participação social e o voluntariado. O próprio conceito de "sociedade civil", de extração hegelo-marxista, foi ressignificado para a refilantropização da solidariedade e a transferência de responsabilidades sociais para a família, a comunidade e o mercado. Foi a época de ouro do "terceiro setor", do "mercado altruísta" ou da chamada "responsabilidade social das empresas". Houve uma audaciosa alienação do patrimônio público, aliada ao chamamento à participação social.

A sucessão de Fernando Henrique Cardoso deu origem a uma longa controvérsia: a vitória do ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva foi uma ruptura ou uma continuidade em relação à agenda trazida por Collor de Melo e aprofundada pelo seu sucessor? Na pior das hipóteses, Lula teria acrescentado uma agenda social à agenda econômica de Fernando Henrique Cardoso. O fato é que a chamada sociedade civil brasileira foi assaltada por uma imensa crise de identidade, sobretudo com a cooptação de antigas lideranças sindicais, comunitárias e estudantis pelo governo petista, enquanto a sociedade via estarrecida a sucessão de escândalos no Congresso nacional.

Neste ponto, é preciso convir que Lula assistencializou os direitos e neutralizou os efeitos disfuncionais do Poder Legislativo sobre seu governo. A idílica sociedade civil brasileira vem a muito custo procurando se rearticular, fora do espaço da cooptação e do governismo, mas encontra dificuldades por causa do grau de apoio que o governo desfruta seja entre as elites econômicas do país, seja entre os excluídos sociais, que, graças à ampliação significativa da Bolsa Família, vêm cruzando a linha que separa a miséria da pobreza.

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Michel Zaidan Filho é professor da Universidade Federal de Pernambuco.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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