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Memória e política (Armênio Guedes aos 90 anos)

Raimundo Santos & Luiz Sérgio Henriques - Maio 2008
 

Aos 90 anos, que se completam em 27 de maio, Armênio Guedes exibe uma larga e rica trajetória no antigo PCB, como um dos intelectuais mais identificados com a tradição pecebista, que, desde 1958, afirmou-se entre nós, e não sem muita reação e resistência por parte de outras forças de esquerda, com o que então se chamava de "caminho democrático (ou pacífico) para o socialismo". [Ver também: Tio Júlio, O comissário cordial, Armênio Guedes] 

Homem de intensa vida partidária, foi um dos redatores-chave da "Declaração de Março de 1958", um marco deste mesmo "caminho democrático". Ainda em 1959, nota-se outro momento digno de nota, quando escreve na Voz Operária um artigo sobre a "ação positiva das forças nacionalistas", o primeiro dos dois textos abaixo reproduzidos. 

No rastro da nova política decorrente da "Declaração", esta preocupação com uma "ação positiva" reflete o nexo com o qual os comunistas, a partir de então, buscaram conjugar as tarefas do presente com a perspectiva mais geral da democratização do país, inserindo-se assim na vida política real e evitando a fraseologia supostamente revolucionária, que se revelaria suicida na crise do regime democrático em 1964.

(Não casualmente, em 1960, na revista Novos Rumos, um outro dirigente, Marco Antonio Coelho, publicaria "A tática das soluções positivas", texto igualmente representativo de um comunismo que aspirava a romper com a capa de chumbo do dogmatismo stalinista.)

A busca coerente daquele tipo de nexo faria de Armênio, entre outras coisas, o principal redator da resolução do Comissão Executiva do Comitê Estadual da Guanabara, em março de 1970, um dos textos mais interessantes do PCB. Nele, Armênio debruça-se sobre a conjuntura dos anos de chumbo, divisando linhas de resistência ao regime de 1964 que, a médio prazo, o levariam ao isolamento e à derrota.

Armênio deixou o país por decisão partidária, passando longa temporada no exílio. Viveu o Chile de Allende e conheceu o eurocomunismo, seguindo-o de perto em função das relações do PCB com o PCI e o PCF. E deve-se lembrar que só por isso esteve a salvo da repressão desencadeada em 1974-75 contra os "socialistas desarmados" do PCB, quando, entre vários outros militantes, desapareceram onze dirigentes do Comitê Central. 

Ainda em Paris, às vésperas de retornar ao país e em meio aos graves conflitos que cindiram o grupo dirigente do PCB - uma parte do qual jamais abandonaria o vínculo com a URSS nem superaria uma concepção instrumental da democracia "burguesa" -, Armênio valoriza coerentemente a nova legalidade democrática que se avizinhava: "Quando desembarcarmos no Brasil, legalmente, é que a situação mudou. Esse desembarque tem em si mesmo uma significação. Significa que foram conquistados espaços democráticos no Brasil, ainda que nós consideremos que esses espaços não correspondem plenamente à democracia política a que todos aspiramos em substituição ao atual regime. Nosso objetivo, nosso objetivo imediato, vai ser o de nos incorporarmos à política para a ampliação dos espaços" ("O PCB encara a democracia", Jornal do Brasil, 27 jul. 1979).

É no contexto do final do regime autoritário que deve ser entendido o segundo texto abaixo reproduzido, retirado do semanário Voz da Unidade, em 1980, e dedicado ao balanço político daquele ano. Estávamos ainda no governo Figueiredo, e não se podia excluir a possibilidade de retrocesso, como o demonstraria o episódio do Riocentro em 1981. Só no ano seguinte, em 1982, é que as forças oposicionistas conquistariam o governo de três estados fundamentais, como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, viabilizando a sustentação política do grande movimento pelas diretas-já e, posteriormente, a eleição de Tancredo Neves, uma ação própria da grande política ao subverter o significado de um colégio eleitoral concebido originalmente para garantir a reprodução do regime de arbítrio.

No seu conjunto, os dois textos, mesmo pertencendo a situações tão díspares, constituem breves, mas incisivos, exemplos dessa tentativa constante, por parte do veterano dirigente, de apreender na flutuação da conjuntura as determinações estruturais e de extrair da análise previsão e perspectiva. Para tanto, é sempre essencial levar acuradamente em conta o movimento do conjunto dos atores, inclusive e especialmente do adversário, e valorizar as mais sutis possibilidades da ação política.

No fundo, a valorização da política, fora do esquematismo doutrinário, é a grande lição heterodoxa de Armênio Guedes; e ela nos é útil não apenas para capturar o sentido desta ou daquela conjuntura, mas, fundamentalmente, para enriquecer os termos em que se possa reconstruir a cultura política da esquerda democrática, num momento em que não são poucos os sinais de desalento e desorientação (Raimundo Santos e Luiz Sérgio Henriques).

1. Uma ação positiva das forças nacionalistas (Voz operária, 28 jun. 1958).

A luta entre as forças interessadas no desenvolvimento do país e os grupos entreguistas é uma constante da situação política atual do Brasil. Trata-se de uma luta que tende a se prolongar ainda por algum tempo. Como em todo embate desse tipo, teremos sempre, no curso do seu desenvolvimento, períodos de calmaria e momentos de tensão. Nos momentos de tensão, as forças em choque adquirem contornos mais definidos e, o que é mais importante, ampliam ou restringem suas fileiras. Não há dúvidas que historicamente as possibilidades de avanço são das forças nacionalistas. Mais tais possibilidades só se tornarão algo real pela ação consciente das forças sociais de vanguarda. Daí a necessidade de destacar, do conjunto da ação política concreta, aquilo que é positivo e que representa, muitas vezes, o ponto de partida para uma direção política acertada ou que, pelo menos, constitui um importante elemento de uma tal direção.

A situação atual, condicionada pelas dificuldades financeiras do país e pela pressão dos imperialistas norte-americanos para quebrar a resistência nacional aos seus planos da escravização, deu lugar a um novo período de tensão. Não sabemos se este período terminará com a recomposição ministerial em curso. E é difícil, por isso, dizer quem saiu ou sairá fortalecido do atual choque, se os grupos entreguistas ou o movimento nacionalista.

Nosso objetivo aqui é destacar principalmente o que surge de novo e positivo na ação do movimento nacionalista.

Parece que o fato mais positivo dessa ação foi o caráter da atividade desempenhada pelos nacionalistas em face dos últimos acontecimentos. A pressão nacionalista, exigindo soluções favoráveis ao desenvolvimento independente do país, soluções de resistência ao imperialismo, foi realizada fora e dentro do aparelho de Estado. Não se limitaram os nacionalistas a analisar esse ou aquele fato, como em outras ocasiões. E mais ainda, procuraram, embora em pequena escala, coordenar suas forças, suas ações tinham caráter convergente, ajudaram a esclarecer amplos setores populares sobre o sentido real das questões palpitantes do momento. Foi esse o sentido da ação da Frente Parlamentar Nacionalista, da "Ala Moça" do PSD, das organizações estudantis, da imprensa democrática e nacionalista, dos líderes sindicais, do Iseb, etc.

Queremos citar, como um exemplo típico dessa ação, o memorial dos líderes sindicais de São Paulo ao Sr. Juscelino Kubitschek. Há um trecho do memorial que reflete bem o caráter da intervenção das forças nacionalistas nos últimos acontecimentos:

"Ao dirigirmo-nos a Vossa Excelência, na qualidade de intérpretes da vontade dos trabalhadores, coerentes com os princípios que juntos defendemos no curso da árdua e memorável luta pela eleição e posse de Vossa Excelência, ressaltamos que é inadmissível a recomposição do ministério com a inclusão dos setores entreguistas que representam a frustração da marcha da política de emancipação econômica nacional a que se propôs o governo de Vossa Excelência."

É sob a pressão do movimento nacionalista que os novos ministros ocuparão os seus cargos. Certamente alguns deles são nomeados por imposição dos setores entreguistas. Mas isso não é o bastante para que mudem os rumos da política governamental, no sentido de liquidar os elementos nacionalistas que ela encerra e fazer preponderar e vencer o seu lado entreguista e reacionário.

Os últimos acontecimentos não levam à dedução de que uma das forças em choque já esteja em condições de impor uma decisão definitiva, isto é, empolgar o governo e imprimir sua fisionomia à política interna e externa do país. A atual instabilidade do governo - responsável pelos seus constantes vaivéns - prolongar-se-á por algum tempo, até que uma das forças em pugna imponha uma decisão que lhe seja favorável.

O movimento nacionalista dispõe dos fatores essenciais para impor essa decisão, batendo os elementos entreguistas e reacionários. Já existem as premissas políticas essenciais para a formação de um governo nacionalista no Brasil. Mas é necessário vencer grandes e fortes obstáculos que se opõem a isso. Um dos primeiros passos a ser dado nesse sentido é terminar com a dispersão política e organizativa nas fileiras do movimento nacionalista. As forças nacionalistas, dispersas por vários partidos e organizações, não atingiram um grau de consciência e unidade de vistas que possibilite sua unificação no plano programático ou organizativo.

Deve haver um esforço permanente no sentido de coordenar as ações em plano local e nacional das diferentes correntes nacionalistas. Não se trata de impor formas rígidas de organização, o que seria impossível e estancaria o movimento, mas de elaborar idéias claras, ter soluções concretas para enfrentar as grandes e as pequenas questões da luta antiimperialista e, nessa base, ir estruturando a frente única em bases sólidas. Uma medida que impulsionaria esse esforço organizativo seria talvez a realização de reuniões de contato, em que seriam debatidos problemas do movimento nacionalista e estabelecidas as respectivas soluções.

Vencida a dispersão de suas forças, o movimento nacionalista cresceria rapidamente. Os comunistas, que já têm elaborado alguns pontos de vista sobre o movimento nacionalista, precisam colocar toda a sua experiência política a serviço da organização do movimento nacionalista. Esta a linha mestra que deve orientar nossa atividade no decorrer da atual campanha eleitoral.

2. O impasse político e a saída democrática (Voz da Unidade, 31 dez. 1980).

O ano que acaba de terminar não foi nada pródigo para a política de abertura do governo. Nem também para a unidade de ação das forças da oposição.

No começo do atual governo houve a atividade desenvolvida por Petrônio Portela. A linha por ele esboçada - e mesmo alguns dos passos que deu como ministro político do governo - deixavam ver sua intenção de conseguir, mediante acordo com certas forças intermediárias e a médio prazo, a formação de um governo de transição. Um governo que, ao alargar as bases políticas do atual Poder, se tornasse capaz de superar as instituições e hábitos autoritários criados pela ditadura e de tornar possível o aparecimento das condições essenciais para a reorganização democrática da vida brasileira.

Nada nos garante, contudo, que, caso continuasse vivo, Portela fosse capaz de concretizar suas intenções, que fosse capaz de vencer os partidários do imobilismo no âmago do regime e das forças armadas. Mas é um fato - e o tomamos antes de tudo como um ponto de referência - que a morte do ministro marca um ponto de involução na política de abertura do governo Figueiredo.

A partir desse momento, e sob a pressão dos "duros" do regime, o governo vem enveredando por caminhos que dificultam a ação das forças democráticas e de oposição e amortecem o ritmo do processo político iniciado com a anistia. Somam-se, na ação do Poder, os atos e medidas eivados de arbítrio e autoritarismo. Estão neste caso a suspensão das eleições municipais de novembro passado, a aprovação da lei contra os estrangeiros, a demissão de ministros que tentaram realizar uma política liberal, a política de recessão econômica nos moldes do FMI, etc. No meio de tudo isso, e como único ponto positivo, resta apenas a aprovação da eleição direta para governadores em 1982, conquista que deve ser defendida com unhas e dentes, principalmente no sentido de impedir que sua importância seja diminuída pela legislação eleitoral casuística pretendida pelo regime.

Por sua parte, as oposições, caindo muitas vezes nas malhas da política divisionista do governo, nem sempre souberam dar continuidade e colocar num nível mais elevado o processo de convergência e unidade iniciado nos meados dos anos 70. O certo é que no ano que findou foi muito difícil um entendimento e aliança mais profundos entre as forças que se esforçam para dar fim ao regime autoritário.

Chegamos assim em 1981, tanto pelo que ocorre no campo do governo como pelo que se passa no lado das oposições, a uma situação complicada. Uma situação de impasse político ou, quando menos, próxima disso. Além de tudo, seriamente agravada pela crise econômica em que vive o país.

É dentro desse quadro complexo e carregado de tensões sociais que as oposições e as correntes democráticas terão que atuar no ano que agora começa.

Antes de tudo, para evitar qualquer passo em falso, é preciso analisar e avaliar com precisão o caráter opressivo do regime. A resistência das forças democráticas, quando bem orientada, tem, em muitas ocasiões, atrapalhado a estratégia do regime, ajudando a avançar o processo de abertura.

De qualquer forma, os dados de que se dispõe indicam que o período de transição, longe de ser linear, tende a continuar em ziguezague e pode se prolongar por um tempo mais longo do que seria desejável. As forças democráticas, para avançarem, precisam estar bem conscientes das possibilidades de recuo - de fechamento e de volta aos tempos do AI-5 - que o momento e as tensões atuais encerram. É uma situação que exige firmeza, habilidade e prudência. E em que as convergências e a unidade das oposições são indispensáveis. Mas esse esforço de unidade e convergência não deve, na conjuntura presente, limitar-se ao universo das oposições. Tem que ir mais longe e, num trabalho paciente e prolongado, abarcar correntes, grupos e pessoas que, apesar de ainda permanecerem no sistema de forças do governo, começam a questinar o autoritarismo do regime e a exigir a ampliação das liberdade públicas.

Há uma outra observação que pode ser feita a partir da peculiaridade do momento político que atravessamos. É que, talvez no caso brasileiro, a superação do autoritarismo e a conquista de um regime democrático possam ocorrer sem mudanças bruscas e violentas. Resultarão antes de uma guerra de posições - no bom sentido da tese gramsciana. Mas haverá, necessariamente, um momento de ruptura das instituições autoritárias e repressivas, que se dará pela pressão conjugada da opinião pública e de um amplo movimento de massas.

É com tal visão que hoje devemos trabalhar. E é por ela não estar presente, até aqui, no pensamento e na prática das forças democráticas e do movimento operário que os diferentes segmentos da oposição se perdem ou em propostas muito gerais, a médio e longo prazo, ou em reivindicações que se esgotam em questões particulares e corporativas.

Toda a reflexão até aqui desenvolvida induz a afirmar que os grandes problemas do país situam-se hoje nos termos concretos de um período de transição, ainda que ambíguo e pouco definido. E é neste contexto, portanto, que terão de ser resolvidos. Não seria fora de propósito que as forças democráticas - que não têm interesse nem na continuação do impasse nem no confronto - comecem a pensar na oportunidade ou não de se trabalhar com a idéia de um governo de transição, integrado pelas mais amplas forças e capaz, por isso mesmo, de dar começo à reorganização política do país.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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