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O comissário cordial (Armênio Guedes aos 90 anos)

Maria Inês Nassif & Thiago Mendonça - Maio 2008
 

Ele não era mais nenhuma criança. Tinha história, 64 anos, uma lista de conflitos internos com o PCB, convicções democráticas e nenhuma paciência para um inquérito stalinista. Mas, ainda assim, foi chamado à presença do secretário-geral do partido, Giocondo Dias, para um injustificável puxão de orelhas. "Você contou ao Davi Capistrano Filho que ele estava sob processo de expulsão no Comitê Central?", perguntou Dias. Contou, sim. Era seu amigo, também era um camarada, e Guedes achava que ele tinha direito a essa informação - que, aliás, era um segredo de polichinelo. Todo mundo sabia. Ter que responder a essa pergunta foi a gota d'água. "É só isso que você quer saber?" O cabo Dias disse que era. Guedes, quadro profissional do Partido Comunista Brasileiro desde 1945, subiu então um andar e pegou seu último salário. [Ver também: Tio Júlio, Memória e política, Armênio Guedes]

Era o ano de 1983 e pela primeira vez em 49 anos Guedes não era um coletivo. Foi sozinho que entrou num cinema e assistiu a um filme que até hoje não sabe qual era. Havia rompido, enfim, com a máquina partidária que lhe dava um salário no fim do mês e uma vida nos bastidores, onde não existiam os compromissos privados, vida particular, conta bancária e vínculo empregatício formal. Interrompia ali um percurso de 4 anos apenas de legalidade, antecedidos de 32 anos de clandestinidade e mais 11 de semiclandestinidade - fingindo vida normal, mas com militância intensiva num partido de libertação do proletariado no qual questionava praticamente tudo havia 27 anos, inclusive a forma de libertação proposta para esse proletariado.

Teve sua primeira conta bancária quando, logo depois de seu desligamento do partido, foi trabalhar na "imprensa burguesa" - a Isto É São Paulo, então da empresa Gazeta Mercantil. Depois editou Opinião na Gazeta Mercantil. Saiu do jornal aos 87 anos. Trabalha na Imprensa Oficial de São Paulo. Nesta sexta-feira, 30 de maio, completa 90 anos. "Eu deixei o PCB, mas não como as pessoas que deixam de fumar, que ficam antitabagistas", disse para o jornalista Paulo Totti, numa conversa de bar, para explicar que continuava amigo de ex-camaradas - e isso não é pouco num partido em que a ortodoxia separava o partido do proletariado, de um lado, e os inimigos do povo, de outro. "Eu sou um comunista avulso", definiu-se, rindo, em depoimento ao Museu da Pessoa.

Guedes foi um comunista que se tornou um democrata militante - o socialismo democrático era um horizonte muito claro depois do exílio na Europa, onde o Partido Comunista Italiano de Enrico Berlinguer, o Partido Comunista Francês e o Partido Comunista Espanhol introduziam a questão democrática não como meio, mas como fim da luta pelo socialismo. Foi pelas mãos e cabeças dos exilados brasileiros na Europa que Antonio Gramsci entrou definitivamente no Brasil e, com o pensador italiano que marcou a militância comunista italiana no pós-Guerra, o eurocomunismo. "Éramos neurocomunistas", brinca Guedes. Não sem conflitos. O "éramos" incluía, em Paris, intelectuais como Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho, Milton Temer, Mauro Malin, Ivan Alves Filho, Aloysio Nunes, entre outros. No Brasil, o núcleo paulista convergiu para o eurocomunismo.

Guedes era uma unanimidade entre os intelectuais e os jovens que engrossaram as filas de exilados brasileiros no Chile e em Paris na década de 1980. Era cada vez mais, todavia, a pedra no sapato de uma direção partidária que bebia do stalinismo e tinha uma enorme tendência autoritária. Guedes e Zulmira Alembert, que foi sua primeira companheira, por 26 anos - ele vive com Cecília Comegno há 31 anos -, eram o centro de uma comunidade de exilados brasileiros no Chile de 1971 até 1973, quando um golpe militar destituiu o governo socialista de Allende. Em Paris, com documento falso, em nome de um Lásaro Feitosa Alexandre, e o codinome Júlio, tomado emprestado do pai, Guedes agregou a comunidade de exilados brasileiros. Gravitavam em torno dele não apenas os intelectuais do partido, mas o que chama de "radicais arrependidos", egressos da luta armada que haviam renunciado à violência e aderido ao debate sobre a via democrática. E também aqueles que não se arrependeram. "Com Armênio eu aprendi a ser tolerante", conta o ex-militante Sérgio Augusto de Moraes. "E aprendi a ser modesto, coisa que o PCB não cultivava muito. Acho que o Armênio estava mais para o PC chileno - era tolerante e modesto." Moraes conviveu com ele no Chile. "Ele não tinha ambição de poder", completa o historiador Ivan Alves Filho, que viveu com ele em Paris. "Eu era mais jovem e mais sectário que ele", diz Malin.

A cordialidade, no entanto, tinha um limite. Ela acabava na luta interna. "Ele se irritava muito nas reuniões", afirma Givaldo Siqueira, hoje membro da Executiva Nacional do PPS, legenda que sucedeu ao PCB. Se a paciência era o termo usado pelos de fora da direção do partido para qualificar Guedes, a irritação nas reuniões de comando eram a sua marca.

Por que Luís Carlos Prestes, o secretário-geral que manteve o partido alinhado à União Soviética mesmo quando o bloco comunista dava sinais de exaustão, o irritava tanto? "Não era Prestes, eram todos. Eu não gostava daquela prática de, antes de uma reunião, você ser o primeiro a pegar o sujeito no aeroporto, falar na orelha dele e conchavar o seu voto antes. Eu não conchavava. Falava na reunião e pronto." Não gostava também do pensamento militarista que fazia convergir toda e qualquer estratégia para o "assalto ao poder".

O jeito de "falar e pronto" lhe valeu uma relação de amor e ódio com Prestes. Em 1945, Guedes tornou-se quadro profissional do partido ao ser designado secretário particular do secretário-geral do partido, que saía da cadeia após uma anistia política, no fim do Estado Novo. "Éramos quase uma família."

Guedes é a única testemunha de vários fatos na vida do mítico secretário-geral do PCB. Um deles é o dia em que Prestes teve a confirmação de que sua mulher, a alemã Olga Benário, deportada por Getúlio Vargas para a Alemanha grávida de Anita Leocádia, fora morta num campo de concentração nazista. "Estávamos numa reunião, no Rio, e Pedro Pomar soube que uma agência de notícias divulgara a lista de mortos - famosos - nos campos de concentração. Olga estava na lista." Prestes e Guedes foram direto para a estação de trem, para viajar para São Paulo. Ao longo de toda a noite, na cabine que abrigava os dois, o líder ficou imóvel, de cabeça baixa, sentado na cama debaixo do beliche. "Chorando, acho."

Guedes morava com Prestes quando ele conheceu a filha Anita Leocádia, que nasceu na cadeia, na Alemanha. "O Prestes era muito carinhoso com a filha - uma filha que ele não tinha conhecido, de uma mãe que tinha morrido em campo de concentração, então, todo carinho dele era para a filha." O líder comunista nem sequer era seco. "Nessa época ele falava muito, vinha de um longo período de isolamento na cadeia e tinha necessidade de falar, contava muitas histórias, muitas da Coluna Prestes." A Coluna foi um movimento militar que percorreu invicto o país entre os anos de 1925 e 1927 e integrava o movimento tenentista, de inspiração positivista.

Não era seco, mas era sectário. Era aí que pegava. "Prestes era um homem ortodoxo nas suas relações políticas. Se alguém fizesse alguma coisa que ele considerasse contra o partido se transformava no inimigo do povo e do proletariado", diz Guedes. "No fim da vida, ele deixou de falar com todos nós que ficamos no partido, contra a opinião dele." Prestes era, enfim, como um ex-fumante que se torna um antitabagista radical. Quando Gregório Bezerra morreu, em 1983, já havia saído do PCB por considerar que o partido havia rompido com o compromisso revolucionário. No velório, um ex-camarada tentou estender-lhe a mão. "Ele disse que não apertava as mãos de um inimigo do proletariado", conta Guedes.

Ele também se irritava com o militarismo do PCB e de seu líder. "Prestes tinha uma mente conspirativa, como quando começou conversas com setores nacionalistas do Exército", diz. Recorda-se também da "tática tortuosa" que imaginou o líder de, no governo de João Goulart, jogá-lo contra o líder da oposição, Carlos Lacerda, para assaltar o poder no vácuo criado pelo conflito. Mas foi Prestes, lembra, com seu carisma e popularidade, que conseguiu, no curto período de legalidade do PCB, entre 1946 e 1947, transformá-lo num partido de massas, com 200 mil filiados, reconhece Guedes. E foi o mesmo Prestes que, submetendo o partido e sendo submetido por ele à "política do gueto", reduziu-o a cerca de 5 mil membros quando caiu na ilegalidade, em 1947. "Hoje eu acho que foi uma clandestinidade exagerada. O partido aceitou o gueto como vocação. Essa coisa de gueto dos comunistas não era apenas uma coisa de fora para dentro, mas estava dentro de nós, assim como aconteceu com os judeus. Era excludente", afirma.

Foi Prestes também que forçou a saída de Guedes do Comitê Central todas as vezes em que esteve nele, exceto a última. "Sempre entrei nas direções quando o partido estava destroçado, e sempre fui tirado quando ele se organizava. Nunca gostei de disputar poder", diz. Na última vez que foi destituído da direção, não foi Prestes o artífice de sua saída porque ele era também excluído da secretaria-geral na mesma reunião. Um, por "desvio de direita"; outro, por "desvio de esquerda". O Comitê Central secretariado por Dias afirmava, então, sua autoridade com posições ambíguas. Rechaçara Prestes, que insistia na democracia como "acúmulo de forças" para uma tomada do poder em direção à ditadura do proletariado - que viria a ser a etapa de transição ao verdadeiro socialismo - e no alinhamento automático à União Soviética. E, por outro lado, eliminara a discussão sobre a democracia como um fim em si mesmo, isto é, a construção do socialismo democrático pelas vias institucionais preconizada por Guedes e o seu anti-sovietismo. Ficou num meio-termo, reafirmando a "frente democrática" que foi pregada pelo partido durante toda a ditadura militar, mas ficou onde sempre esteve: sob o Partido Comunista Soviético. E, ao enquadrar divergências, reafirmou a plena vigência do centralismo democrático stalinista, por meio do qual Prestes e os ortodoxos soviéticos haviam submetido o PCB por muitas décadas.

Para um secretário-geral de origem militar e stalinista não deve ter sido fácil encarar a autonomia de Guedes e do grupo de intelectuais do qual fazia parte, embora ele a usasse quando fosse conveniente estrategicamente. Foi assim em 1958, quando o secretário-geral, depois de isolar-se numa excessiva clandestinidade, mantendo contato apenas com dois dirigentes stalinistas ortodoxos, emergira para encontrar um partido dividido pela rígida posição do Comitê Central, que tentou abortar as discussões acerca do chamado Relatório Krushev, apresentado a portas fechadas ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em fevereiro de 1956, denunciando os crimes do ditador soviético Josef Stalin, que havia morrido três anos antes.

A direção continha o debate, que nessas alturas não abalaria apenas os alicerces da tese da ditadura do proletariado, mas do próprio centralismo democrático em que estava assentada a autoridade da direção sobre a base partidária. Até que a discussão transbordou para os jornais Voz operária e Imprensa popular, que publicaram o artigo "Não se pode calar um debate que está em todas as cabeças". A comporta foi aberta. "A partir daí foi uma enxurrada, havia centenas de artigos de intelectuais do partido." E não parou mais, até resultar no rompimento de um grupo liderado por Agildo Barata.

A crise foi tão grande que obrigou Prestes a sair da profunda clandestinidade que tinha se imposto para liderar o afastamento, da Comissão Executiva, dos ortodoxos Diógenes Arruda, João Amazonas e Maurício Grabois. Foi a Guedes e a Jacob Gorender, Mário Alves e Alberto Passos Guimarães que Prestes pediu a formulação de um documento, conhecido como Declaração de Março de 1950, que pôs pela primeira vez oficialmente uma opção democrática de revolução, apesar de todos os "mas" que foram necessários para ressalvar uma relação de total submissão à autoridade soviética.

"Depois da Declaração de Março o partido começou a sair à luz do dia", conta. Era o início do governo Juscelino Kubitschek e o partido, embora ainda ilegal, tinha sede, jornal legal e "saiu do gueto". "Não havia mais uma campanha sistemática contra o PCB, o partido havia apoiado Juscelino para a Presidência e a Declaração abriu espaço para a volta às organizações de massa", diz Guedes. "O PCB voltou aos sindicatos, participou das eleições, tinha presença em movimentos pela paz e de mulheres e militava na União Nacional dos Estudantes em unidade com outras forças democráticas. Mas ainda assim havia muito de retrógrado na sua direção. Por exemplo, a direção via no governo Jango um governo de conciliação com o imperialismo. Isso travava as posições do partido. Também era ambígua a sua posição em relação à reforma agrária, porque ao mesmo tempo em que optava por uma reforma agrária radical, tinha pessoas que eram contra ela", prossegue.

A Declaração de Março foi uma curta lua-de-mel de Guedes com o Comitê Central e seu secretário-geral. Pouco antes, em 1954, ele havia sido destituído de suas funções na direção nacional porque havia questionado abertamente, em Moscou, os ensinamentos da escola soviética. "A gente vivia num território a 60 quilômetros de Moscou, numa escola que era uma casa muito grande. Lá a gente tinha de tudo, de gabinete médico a restaurante. Raramente íamos a Moscou. Era um monastério", conta. Pegou-se uma vez com uma professora, que definiu o imperialismo soviético como salvador. Estava internado num hospital do Kremlim, em Moscou, quando Stalin morreu, em 1953. Já se ouviam boatos. Depois, de volta à escola, ouviu da boca de um professor que Stalin poderia não ser um fiel seguidor de Lenin. Ficava implícito que estava liberada a temporada de críticas a Stalin. Lenin continuava intocável - e, portanto, o bolchevismo.

Chegou ao Brasil em 1955, já fora da direção. Foi o troco também por sua oposição ao grupo vitorioso no IV Congresso, em 1954, que aprovou um documento com as mesmas posições do Manifesto de Agosto de 1950, que havia posto o partido no total isolamento. "O programa era tirar o país do campo da guerra e do imperialismo e colocá-lo no caminho da paz e do socialismo, e para isso era necessário organizar guerrilhas no campo, estar pronto a tomar o poder de assalto nem que fosse por horas, para mostrar a diferença entre um governo socialista e o capitalista."

O programa não era apenas um atrelamento à URSS por seu conteúdo, mas pela sua origem. "O [Diógenes] Arruda [Câmara] foi duas ou três vezes discutir o texto com os referentes nossos no Partido Comunista Soviético." Foram os responsáveis pelo PCB na URSS que fizeram as emendas. "O Arruda falou que não podia mudar uma vírgula." Foi assim que o texto foi aprovado pelo Comitê Central: sem que se mudasse as vírgulas. E teve que ser rasgado em 1958, pela Declaração de Março. E pela denúncia ao stalinismo.

Reabilitado com a volta de Prestes em 1958, Guedes foi editar a revista Estudos sociais, dirigida por Astrojildo Pereira, o velho intelectual comunista que esteve na origem do PCB, foi expulso na sua fase "obreirista" e voltou depois, mas jamais deixou de ser visto como um ex-anarquista. Quando o primeiro número foi para as ruas com um pequeno editorial assinado por Guedes e Astrojildo, a direção quis intervir no conteúdo. Guedes não deixou. No final, aceitou a posição intermediária de fazê-la uma "revista de tendência marxista". Estava afastado o risco de tornar-se voz oficial da direção comunista - que, aliás, tinha uma seção chamada "Problemas", lotada de artigos traduzidos do russo e dentro dos mais rigorosos parâmetros de propaganda comunista. Guedes acusava, não sem prazer, nessa época, o seu isolamento da direção do PCB, segundo Leandro Konder numa entrevista à Democracia viva. "Estou usufruindo uma solidão maravilhosa, o que eu penso e o que eles pensam não coincidem em nada."

Depois de 64, o partido consolidou a tese da frente democrática, provocando rachas sucessivos no partido. "Armênio foi uma das pessoas que mais atuaram para derrotar as posições dos grupos internos que pregavam a luta armada", afirma Sérgio Augusto de Moraes. "Eles foram expulsos, ou saíram." Mas isso estava longe de significar a vitória do grupo de intelectuais que tentava resolver a contradição original do partido, de pregar uma frente democrática e ao mesmo tempo a ditadura do proletariado como etapa obrigatória para a chegada ao socialismo. Voltou à direção porque boa parte dela havia caído, morrido sob tortura ou torturada e presa, e a outra ido para o exterior. A ditadura apertou o cerco em torno do partido. E ele próprio também saiu.

Clandestino, voltava para casa, em Laranjeiras, dirigindo seu Fusquinha, de uma sessão de cinema que exibia jogos da Copa de 70 - tinha isso, adorava futebol. Foi, então, abordado por um gringo com sotaque centro-americano, com a proposta de tornar-se agente da CIA, o serviço de inteligência americano. "Sabemos que você é contra o terrorismo e precisamos de informação", disse o agente. Ironicamente, Guedes, por suas posições contra a guerrilha, havia sido confundido com a direita. Despistou, disse que estava doente e afastado. Mas Wilson - assim ele se apresentou - disse que sabia de sua posição na direção do PCB por meio de pessoas do partido que haviam sido presas e torturadas. Guedes fingiu que pensaria na proposta, fugiu para São Paulo e lá comunicou a direção do incidente. Resolveram que estava na hora de ele pular fora.

Foi para o Chile, e depois para Paris, como membro do Comitê Central e numa situação na qual o resto da direção estava disperso pelo mundo. E onde viveu a dor da perda do irmão, Célio Guedes, nas mãos da ditadura. "Celito" era dentista, "pessoa de confiança" e motorista do Comitê Central. Foi preso com o médico Fued Saad na fronteira com o Uruguai, e os dois foram levados para o Rio. Saad retornava de Moscou com dólares para o depauperado PCB. Célio foi atirado do 6º andar do prédio do Cenimar, o tenebroso serviço secreto da Marinha. Mais tarde, Guedes viria a acusar a direção de ter enviado seu irmão para a morte, pois tinha sido enviado para buscar Saad, que, sabia a direção, estava marcado. Siqueira diz que Célio foi avisado do risco. No exílio, foi com os amigos que partilhou a mágoa pela ausência do irmão mais próximo. "Ainda bem que não somos obrigados a ser amigos de nossos camaradas", conclui Guedes, à época, para Moraes.

Guedes era o editor da Voz operária no exterior, que era feita em Paris, impressa na Itália e, de lá, enviada ao Brasil para "formadores de opinião". O grupo que defendia a opção democrática para o socialismo e a desvinculação da União Soviética foi à forra, com o seu editor democrático. Em agosto de 1979, quando, enfim, foi assinada a anistia, era o PCB quem tinha demonstrado a tese mais acertada de luta contra a ditadura: a resistência e o aproveitamento dos espaços institucionais para combatê-la. A luta armada não apenas fracassara, como recrudescera a ferocidade do regime.

A "frente democrática" era uma realidade no MDB, com a ajuda dos comunistas. Ainda assim, ou por isso mesmo, o partido bolchevique, que não conseguiu se recuperar do choque das denúncias contra Stalin, estava irremediavelmente rachado. Prestes se recusava a renunciar ao sovietismo e à concepção de ditadura do proletariado e assalto ao poder; o Comitê Central, liderado então por Giocondo Dias, não renunciava ao sovietismo - até porque foi a União Soviética que o sustentou na ilegalidade por quase toda a sua existência e sustentava a burocracia partidária naquele momento; e o grupo em torno de Guedes não admitia, por sua vez, retroceder ao sovietismo ou à ditadura do proletariado.

Quando saiu pela porta da frente do PCB para nunca mais voltar, Guedes tornou-se um comunista "avulso". Os intelectuais que orbitavam à sua volta no exílio em Paris tomaram cada qual um rumo. "O Milton Temer foi o primeiro a sair. Ele disse, isso aqui melou, e foi embora", lembra o filósofo Leandro Konder. "Daí a um tempo saí também." Temer e Konder foram para o PT, e de lá saíram para o P-SOL, depois do escândalo do mensalão, em 2005. Ivan Alves Filho continuou no PCB e está hoje no PPS, partido que lhe sucedeu. "Não conseguimos organizar nem a saída", lamenta Konder.

O secretário da Casa Civil do governo do Estado de São Paulo, Aloysio Nunes, que voltou ao PCB em Paris depois de ter superado "a doença infantil do comunismo" e deixado a Aliança Nacional Libertadora (ALN), foi para o PMDB e depois para o PSDB. E acha que o desfecho da história sequer foi um racha. "Foi o fim de uma trajetória. Ninguém saiu batendo a porta. Simplesmente acabou."



Fonte: Valor econômico, 31 maio 2008.

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