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Rio em debate: relato de uma jornada

Maria Alice R. Carvalho - Julho 2008
 

Na manhã do dia 16 de junho reuniram-se no Iuperj cerca de 30 pessoas interessadas em conhecer aspectos da cidade do Rio de Janeiro postos em discussão pela cientista política e vereadora (PV) Aspásia Camargo, pelo economista Mauro Osório, da Faculdade de Direito da UFRJ, e pelo Coordenador do Cedes, Luiz Werneck Vianna. No mesmo dia, à tarde, com público igual, foram palestrantes o titular do Juizado Especial Criminal de São Gonçalo, Dr. Marcelo Anátocles, o Prof. Luiz César Queiroz Ribeiro (Ippur, UFRJ) e, do Cedes, o Prof. Marcelo Burgos.

O evento foi aberto oficialmente por mim, destacando como objetivo central do encontro o de testar a viabilidade da produção coletiva de um novo diagnóstico sobre o Rio de Janeiro, que tivesse, em relação ao diagnóstico elaborado nos anos de 1980, a mesma abrangência social e similar consenso político, a fim de que pudesse orientar as intervenções públicas e cidadãs no âmbito da cidade.

Considero que, durante os anos de 1980, após uma longa trajetória de debates sobre o Rio de Janeiro, afirmou-se a perspectiva de integração favela-asfalto com vistas à democratização do espaço urbano, o que se materializou em projetos como o Favela-Bairro, até hoje em vigência. Contudo, trinta anos depois, a cidade se tornou exigente de uma nova imaginação pública que a enuncie em termos diversos, pois é outra a tematização proposta por seus atores, e outro, certamente, o repertório intelectual disponível.

Nesse sentido, embora reconhecendo a singeleza de um evento como esse, e o fato de que o Cedes poderá cumprir papel relevante na animação desse debate, mas não poderá operá-lo sozinho, finalizei minha intervenção com o convite para que todos os presentes, sobretudo os palestrantes, levassem a sério a construção de um fórum permanente sobre o Rio.

A primeira intervenção foi a da Vereadora Aspásia Camargo, cujo relatório da CPI sobre a desordem urbana, conduzida sob sua coordenação, era aguardado com interesse. Aspásia ponderou, primeiramente, sobre os limites do seu trabalho, já que "desordem urbana" diz respeito a um conjunto de problemas de competência estritamente local. Desse conjunto estão excluídos, portanto, temas como a violência ou o desemprego, cujos efeitos sobre o Rio de Janeiro são nefastos e terríveis, mas não podem ser tratados pelas autoridades urbanas.

Assim, para Aspásia, "desordem urbana é um termo que se incorporou recentemente ao vocabulário político para designar a omissão e a cumplicidade do poder público diante da ocupação irregular e crescente dos espaços públicos, lesiva à vida cotidiana e aos interesses dos cidadãos. Os tipos de comportamento ilegal que o termo comporta são os mais variados, incluindo a ocupação de calçadas por bares, boates e restaurantes, o barulho excessivo e a poluição sonora em bairros residenciais, os megashows que estão destruindo Copacabana, as máfias de flanelinhas, a favelização dos bairros da cidade, com a presença de práticas informais que vão dos lava-jatos aos pontos de venda de drogas".

A vereadora considera que esse cenário de precarização da cidade é muitíssimo ampliado pelos malefícios econômicos que provoca, com a redução do turismo, do funcionamento do comércio, da presença das sedes de companhias nacionais e internacionais no Rio de Janeiro e com a deterioração do nosso patrimônio cultural e urbanístico.

Como causas de todo o descalabro que se abateu sobre o Rio, a relatora cita: (a) a legislação por decreto, que se tornou uma prática no Rio e concentra cada vez mais poderes nas mãos do Prefeito; (b) a cumplicidade dos agentes do controle urbano com uma política centralizada que emana da Secretaria de Governo e do próprio Prefeito; (c) as práticas discricionárias de licenciamento, que protegem determinados agentes econômicos em detrimento de outros e favorecem o "jeitinho", as cobranças ilegais de propinas, etc.; (d) a inexistência de um Código de Postura Urbana adequado e transparente, de que possa se socorrer o cidadão.

Portanto, a vereadora considera que as causas imediatas do nosso infortúnio dizem respeito à concentração de poderes nas mãos do Prefeito, que administra concessões e licenciamentos de modo arbitrário e imprevisível. Mas, segundo Aspásia, no fundo dessa cultura persistiria um "populismo moribundo, que despreza a economia e amaldiçoa o lucro e as atividades produtivas".

O diagnóstico do economista Mauro Osório, especialista em planejamento urbano, seguiu de perto as proposições da Vereadora. Segundo Osório, alguns economistas importantes têm dirigido sua atenção para o tema do crescimento urbano.

Por que, afinal, algumas cidades prosperam e outras não? Douglass North, prêmio Nobel de Economia, foi convocado ao debate. Segundo North, há determinados "marcos de poder" que favorecem as cidades e outros que as prejudicam. No caso do Rio de Janeiro, para Osório, o marco de poder ainda em vigência seria o que se organizou nos anos de 1970, em torno do clientelismo e do fisiologismo. Esse paradigma, portanto, não foi quebrado, "e todos os governantes que chegam ao poder após o segundo governo Chagas Freitas ou entram articulados com esse marco ou dele se tornam prisioneiros".

A história do Estado do Rio de Janeiro e de sua capital, segundo o analista, não é inocente em relação aos problemas urbanos contemporâneos. "Nos anos de 1960 -diz Osório - existiam duas lógicas na política fluminense: uma nacional e radicalizada, com base na qual o carioca votava referenciado no debate nacional, e uma lógica fragmentária, que passava pela Câmara dos Vereadores, que tinha pouco poder de fato. Quando ocorrem as cassações no Rio, vão-se a esquerda e a direita, pois a UDN, que aqui era lacerdista, vai de roldão. Tal situação gerou um vazio político na cidade, ocupado por Chagas Freitas, então deputado federal, dono do principal jornal popular e presidente do Sindicato Patronal de Jornais e Revistas da cidade nos anos 50 e 60."

Para Mauro Osório, assim como para a Vereadora Aspásia, a saída da cidade se encontra na superação desse paradigma clientelista e fisiológico, mediante o encontro da cidade com as principais entidades empresariais. Trata-se, pois, de uma renovação da vida urbana, com a conclamação ao debate de novos atores, até aqui pouco comprometidos com sua projeção.

Por fim, falou Werneck Vianna, para quem a cidade do Rio de Janeiro não conheceu a função ético-pedagógica de um patriciado rural, tal como ocorreu em outros contextos de modernização capitalista. Sem elites, sem autonomia política, por força da nossa condição de Distrito Federal, com prefeitos nomeados e uma atividade de vereança subordinada ao Senado, sem mais, a partir de 64, a vertebração que a relação PTB/PCB conferia à cidade, o Rio está carente de política.

Na face terrível ostentada pela cidade - violência, crime, feudalização do território, apropriação privatista de recursos de poder, etc. - Werneck vê um método. "Não há caos nessa cidade. Há uma estrutura de poder que comanda essa Nápoles". É isso que permite pensar uma forma de intervenção que desmonte essa estrutura e libere as forças mais enérgicas da cidade: os jovens, os empreendedores, os intelectuais da cidade. Portanto, para Werneck, a questão não se coloca apenas no plano de uma reorientação das atividades econômicas locais, com a correspondente valorização dos interesses e entidades empresariais. A questão é política, sobretudo.

À tarde, os trabalhos foram reiniciados com a intervenção do juiz Marcelo Anátocles, há 10 anos trabalhando em São Gonçalo, no Juizado Especial Criminal. Sua intervenção centrou-se no tema da construção daquele espaço institucional e das dificuldades que o próprio Poder Judiciário manifesta quando se trata de valorizá-lo. De qualquer modo, Anátocles reafirma a idéia de que a democratização do acesso à justiça é parte integrante, se não a mais relevante, do processo de pacificação social das cidades.

Sua principal contribuição ao debate consistiu na defesa de uma "prática pública" por parte do juiz dos Juizados, que reconheça o entorno e interaja com ele. Nesse ponto pode-se dizer que suas intuições são muito próximas daquelas que o Prof. Marcelo Burgos vem chamando de "justiça de vizinhança" e que dizem respeito ao conjunto de instituições formais e informais que, em um contexto de proximidade, selam as chances de que diferentes atores, com distintos interesses, se reconheçam como parceiros na construção do bem comum.

Esse, aliás, o mote da intervenção de Marcelo Burgos. Segundo ele, é irônico que uma cidade que tanto representou o espírito que animou a Constituição de 1988, vinte anos depois da sua promulgação pareça ser das mais distantes do ideário de 88. "Com índices insuportáveis de violência, uma sociabilidade marcada pela baixa civilidade, e politicamente loteado em territórios dominados por ‘donos do pedaço’, o Rio pouco conseguiu se beneficiar dos incentivos à participação democrática inscritos em uma Constituição de notável inspiração municipalista."

De positivo, contudo, Marcelo ressalta o fato de que, "não por acaso, o Rio de Janeiro é uma das cidades onde os mecanismos de judicialização da política e da vida social - última retaguarda da democracia constitucional - mais vêm sendo utilizados, através do recorrente recurso ao Tribunal de Justiça para a apreciação de ações diretas de inconstitucionalidade questionando normas aprovadas pela Câmara, do uso intensivo de ações populares e civis públicas interpelando a improbidade administrativa e a omissão do poder público, da presença marcante do Ministério Público na regulação de conflitos da cidade, em áreas como meio ambiente, direitos de minorias e de segmentos fragilizados, como crianças e idosos; e através, ainda, da crescente dependência da ação fiscalizadora da representação política exercida pelo Tribunal Regional Eleitoral." Portanto, na ausência da política, de uma política democrática que não abandone a cidade e o cidadão no descalabro em que se encontram, os mecanismos de judicialização têm operado e deverão continuar operando, até que se possa recompor o tecido da política.

Por fim, Luiz César Queiroz Ribeiro falou do impasse que reconhece para os atores urbanos contemporâneos. Por um lado, é preciso aprofundar as conquistas democráticas e conceder voz aos atores emergentes. Mas, por outro, é necessário recolocar na agenda pública carioca uma saída economicamente viável para o Rio.

Sem esse debate - diz Luiz César -, será impossível projetar a nossa sobrevivência nas próximas décadas. Portanto, para Luiz César política e economia são dimensões igualmente prioritárias, e com essa sugestão o debate transcorreu por toda a tarde, aquecendo a proposta de um fórum que permitisse o detalhamento de todas aquelas proposições.

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Maria Alice Rezende de Carvalho é professora do Departamento de Sociologia da PUC-Rio e membro da coordenação do Centro de Estudos Direito e Sociedade (Cedes/Iuperj).



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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