Busca:     


A poesia de Andityas: previsivelmente veloz

Ivo Barroso - Julho 2008
 

Andityas Soares de Moura. Algo indecifravelmente veloz. San Mamede de Infesta (Porto): Ed. Edium, 2008. 180p.

Andityas Soares de Moura teve a felicidade de encontrar na Editora Edium, de Portugal, a representação gráfica condigna de sua requintada poesia. O livro Algo indecifravelmente veloz, que reúne a seleção pericial de sua produção até agora, é um tomo em que tudo é belo: a capa, o papel, o espaçamento, a tipologia - contrastando com a precariedade do tratamento gráfico com que em geral são impressos os livros de poesia no Brasil.

Diga-se que esse jovem mineiro, desde seu batismo poético (o livro Ofuscações, de 1997, por ele não considerado na presente obra), até seu crisma com Lentus in umbra (2001/2002), sempre foi considerado entre nós um escritor estrangeiro, sua poesia confundida com tradução. Explica-se: diante do pauperismo intelectual da maioria dos poetas jovens do Brasil, ter uma cultura humanística da extensão da sua, o domínio de falares e escritas galegos e provençais, a intimidade com temas trovadorescos e do português arcaico, e ainda estar à vontade com as inflexões modernas de Pound e de Eliot, é algo quase inconcebível neste país em que ter cultura soa politicamente incorreto.

Já com Lentus in umbra, Andityas nos dava os prolegômenos de sua temática e amostras do rigoroso tratamento a que submetia sua lírica. O livro desse latinista, helenista, estilista, se destinava provavelmente a uma meia-dúzia de colegas-cabeça, daqui e da Espanha, onde o livro foi traduzido. Também ele tradutor, colocou a galega Rosalía de Castro ao alcance de (quase todos os) leitores brasileiros, bem como os poemas do Isso, de Juan Gelman (ambos em 2004).

OS enCANTOS (de 2003) - ciclo galaico-provençal seguido de quatro "poemas-cobra" - são um morceau de bravoure, mas também uma espécie de recaída: exibição de estudioso egresso de bibliotecas medievais; tem muito de leitura e pouco de vivência. O jovem poeta está escondido num burel, e mal se lhe vê a ponta do nariz.

O poema inicial "ave leve", no entanto, é, ao contrário, dos tempos do finado concretismo, no seu estágio de cachorro-vai-cachorro-vem: "prata brilha branco/ branco brilha prata". O livro inteiro pertence àquela fase da poesia de Andityas visivelmente comprometida com sua identificação com a literatura galaico-portuguesa: os temas (canções de amigo, etc.), as construções (mia señor, etc). Era tempo de lhe dizerem que, na contra-corrente dos luminares paulistas, dele se espera não "mais provençais", mas chega de provençais.

Andityas começou a dizer a que veio com seu (ou sua) FOMEFORTE, que, além de seus poemas originais, inclui duas ou três traduções rigorosas, como o expressivo "Prece-poema para o soldado americano", de Juan Grecco y Morales, escrito em sefardita. Como todo poeta jovem que se preza (ou deseja situar-se), Andityas rende ainda suas homenagens de abertura a Pound e aos provençais - dois espólios difíceis de se alienar -, mas logo adquire voz e volume próprios e cristaliza alguns dos mais belos poemas de amor na série "Estampar", onde o erotismo se transfigura na mais tangível vitória da linguagem sobre o pensamento. Absolutamente senhor de um tema difícil ("Caminho da mãe"), Andityas alcança um pitch superado apenas pelo "Pasos lejanos", do peruano Cesar Vallejo. Por fim, o poema "A Moura", que aparece como sendo traduzido do místico sufi Ibn Al-Darmin, é de tão perfeita realização, pelo ritmo de dança gitana, pela escolha rigorosa das palavras, pelo seu envolvimento sensorial, que dificilmente poderia ter sido concebido em outra língua senão a do próprio Andityas (P.S.: O título do livro nada tem a ver com o fracassado programa governamental).

A antologia termina com uma série de inéditos que atestam sua maturidade poética. Liberto do fascínio pelos falares galegos, ousa e consegue ser ele mesmo, mostrar-se de rosto inteiro, sem cogula. "Canção do Mestre Celestial" tem diapasão hierático, oracular, numa linguagem explosiva, cascateante, alcançando crescendos de corifeu. E "Língua de fogo do não" é o poema-fleuve, a mostra de grande fôlego, a homenagem sutil ao todo-sempre Carlos. Mas sutileza de linguagem, desnorteio de imagens, síncopes ritmais luzem em fagulhas de poemas menores (em extensão) como "Lamento", "Clara jóia", "A carne triste" e "A palavra". A lucidez paradoxal do hermético. O senso da cadência, o encontro inaudito das palavras. Uma esperada ascensão: previsivelmente veloz!

----------

Ivo Barroso é poeta e crítico literário.



Fonte: O Primeiro de Janeiro (Portugal) & Gramsci e o Brasil.

  •