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A "guerra suja" mais de 30 anos depois

Luciano Oliveira - Agosto 2008
 

No longínquo ano de 1976 passei uma semana de horror, com medo de ser preso e torturado para confessar sabe lá Deus o quê! Oito dias antes do carnaval daquele ano, no fim de tarde de uma inesquecível sexta-feira, alguns colegas da faculdade e conhecidos do meio político e sindical começaram a "desaparecer". Passaram pelo calvário hoje em dia tão conhecido: incomunicabilidade, capuz e choque elétrico! Tinham sido presos pelas forças de segurança do regime militar que começava a se desagregar, mas ainda tinha fôlego para tais ignomínias.

O episódio foi um de seus estertores, e teve lugar na cidade de Aracaju. Uma semana depois, quando reapareceram, todos tinham marcas de tortura. Eram acusados de tentar reorganizar o Partido Comunista ─ o qual, aliás, sempre foi contra as teses da luta armada... Ainda lembro meu pai, pequeno comerciante e até então um entusiasmado defensor do regime, murmurando indignado: "São uns nazistas..."

A tortura marcou a história do país até hoje. Uma história que teima em não passar. Volta agora em mais um surto (quase ia escrevendo susto!), com a declaração, sem dúvida corajosa, do ministro da Justiça de que a tortura não está coberta pela Lei de Anistia: enquanto crime contra a humanidade, seria imprescritível, e os torturadores podem ser processados por atos que remontam há mais de 30 anos. Acho que ninguém, realisticamente falando, tem alguma ilusão quanto à condenação judicial de algum acusado. Eventuais processos arrastar-se-iam por anos. Uma sentença definitiva da qual já não caiba recurso seria algo igualmente longínquo, e os eventuais sentenciados muito provavelmente já nem estariam vivos. Além disso, a vara de cutucar é muito curta! Quando, nos idos de 1985, com a volta do poder aos civis, começou-se a falar em revisão da Lei de Anistia e punição para os torturadores, o ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves, mandou o seguinte recado aos que o jargão militar chama de revanchistas: "Para fazer um julgamento de Nuremberg é preciso ganhar a guerra, e vocês perderam".

A frase, como expressão de realpolitik, é muito boa. Resta, porém, uma questão não resolvida: quem de fato perdeu a ominosa "guerra suja"! Passados tantos anos, os militares brasileiros se vêem ainda hoje condenados a arrastar a condenação moral que terminou se abatendo sobre a corporação. Depois de ter se tornado uma política de estado, a tortura gerou efeitos não previstos, não controlados e, sobretudo, não desejados pelos próprios vencedores da "guerra suja": o seu opróbrio! Este é um fato sociológico a não ser negligenciado e que merece ser longamente meditado: no Brasil, como na América Latina de um modo geral, ocorreu um fenômeno no mínimo curioso que foi, ao fim dessa guerra, a vitória simbólica dos vencidos! Nossas praças, ruas e avenidas não ostentam os nomes dos torturadores, e nenhum deles tem estátua com a célebre menção "A Pátria agradecida".

E o fenômeno não é só nosso. No Chile, o general Pinochet teve sua velhice assombrada pela possibilidade ─ remota, é verdade ─ de um dia ser preso, e morreu enfrentando um repúdio praticamente universal. Na Argentina, grandes dignitários de uma das ditaduras mais sanguinárias de que se tem notícia estão sob custódia da justiça ─ inclusive o general Jorge Videla, cumprindo prisão domiciliar. Em casa, é verdade, mas preso!

Por aqui, não se viu nada parecido. Várias circunstâncias não possibilitaram incriminar os torturadores. Nem por isso, porém, pode-se afirmar que eles permaneceram completamente impunes. Além das penas morais que sobre eles recaíram, houve de toda forma uma espécie de sanção no processo lento e claudicante mas que, com idas e vindas, terminou se impondo: o do isolamento paulatino dos oficiais diretamente envolvidos na repressão política, afastados de postos de confiança e discretamente preteridos em promoções por merecimento. O seu desapontamento chega a ser compreensível. Heróis daqueles tempos turvos, em que alguns chegaram a ganhar medalhas como a do Pacificador, foram depois alcançados por uma história que gostariam de esquecer. Que lições tirar disso?

Uma delas remete às reflexões de Hannah Arendt sobre a violência instrumental, da qual a tortura é um exemplo extremo. Como tal, a tortura é um meio, não um fim em si mesma. Ocorre que ela também é o que Arendt chama de ação, ou seja, um ato humano que, uma vez praticado, produz efeitos próprios, imprevisíveis e irreversíveis, cujo curso já não é possível de ser controlado por ninguém, muito menos por quem o praticou. Nesse caso, como ela mesma diz no seu belo ensaio Sobre a violência, "o fim corre o perigo de ser suplantado pelos meios"; e estes são "freqüentemente de maior relevância para o mundo futuro do que os objetivos pretendidos". No caso, a tortura tornou-se mais relevante do que o seu resultado: o esmagamento da luta armada. A torpeza que lhe é inerente adquiriu uma dinâmica própria e como que se descolou do fim a que estava adstrita, produzindo efeitos como os surtos de condenação a que, ainda hoje, se vêem expostos os vencedores da nossa "guerra suja".

Tudo isso contraria o antigo postulado de que a História é contada pelos vencedores. O que se deu no Brasil mostra que os vencidos podem ter a última palavra, quando os vencedores ganham a guerra valendo-se de métodos que cobrem de vergonha aqueles que os empregam. Não há fim, por mais nobre que seja, que não seja manchado pela obscenidade suprema que é aplicar choques elétricos no corpo de um ser humano nu, imobilizado e trêmulo de medo e dor. Esse é o único capítulo dessa história dolorosa que está concluído.

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Luciano Oliveira é professor da UFPE.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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