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A Constituição e algumas considerações

Wilson Figueiredo - Outubro 2008
 

A Constituição fez 20 anos sábado [4 out.], à feição sem compromisso de Mamãe faz cem anos, de Carlos Saura, sem ninguém se lembrar de que, ao olho estrábico da História, o material é de boa qualidade. Só faltou a cena inicial com Ulysses Guimarães descendo numa cadeirinha em plena solenidade. A monarquia por aqui se sustentou com apenas uma constituição, embora outorgada, durante 66 anos que não foram fáceis. A República soma 4 constituições nascidas de assembléias constituintes, respectivamente em 1891, 1934, 1946 e 1988, sem prejuízo da que bancou, em 1937, o Estado Novo. Foram 8 anos de ditadura, sem liberdade de imprensa, sem Congresso e sem eleição (e com prisões abarrotadas de presos políticos). A estatística não secou: os Atos Institucionais, do primeiro ao quinto, caíram pela falta de legitimidade e de opinião pública.

Começou bem a Constituinte de 1986/88, embora pudesse também acabar mal aquele festival de amadorismo. A Constituição fez 20 anos vergada ao saldo de 62 emendas que a poliram. O temor se limitou ao fato de se ouvir e ler que deputados e senadores estavam "escrevendo a Constituição". Constituições são aprovadas com responsabilidade política. Escrevem-se carta, livro, bilhete. É pouco para a responsabilidade do mandato eletivo. Em plena batalha, o presidente José Sarney arriscou a profecia de arrepiar os cabelos ao advertir para o risco de ingovernabilidade, enrolada como uma serpente no meio de tantas emendas. Contaram-se 492 alterações no anteprojeto original, pela carência de segurança institucional, e não mais a do Estado com medo da cidadania. Tratava-se de dar à nova constituição fundações flexíveis como nos edifícios altos em países onde a terra treme por princípio geológico. Dos 250 artigos iniciais, 117 passaram por alguma alteração. A criatividade parlamentar gerou 65.809 emendas às Disposições Transitórias, porque a vida política estava atrasada e todos tinham pressa.

O presidente (da Constituinte) Ulysses Guimarães sacou a frase: "A Constituinte passará mas os constituintes sobreviverão à sombra do Bosque dos Constituintes" (cada árvore, um nome). Sorte nossa, que o bosque se foi, muitos constituintes também, mas a Constituição está aí. É a segunda em longevidade relativa, logo depois da republicana de 1891. Já deixou para trás a de 1934 e a de 1946. Na véspera da promulgação, o PT notificou a quem interessasse que seus constituintes se recusavam a comparecer e assinar o novo texto pelas razões de sempre: uma constituição burguesa não merece o aval de esquerdistas que se prezam. Mas, depois de ponderações e panos quentes, todos assinaram (discretamente). O petismo deu ali o primeiro sinal de que não seria o mesmo. A carta de Lula aos brasileiros, em 2002, abriu-lhe o acesso ao poder burguês, onde, aliás, todos se dão muito bem, obrigado.

O ponto nevrálgico na elaboração da nossa lei das leis foi o corte das asas do Executivo, dada a incompatibilidade óbvia entre ele e o Legislativo, pela insistência em invadir a margem normativa onde operam os eleitos para cuidar das leis. Antes de um impasse funcional entre os dois Poderes, a questão se resolveu com as Medidas Provisórias, de inspiração parlamentarista e intenção oculta à espera de oportunidade. O debate premiou o presidencialismo e o núcleo de conflitos futuros ficou para ser resolvido noutra oportunidade. Sarney alertou para a crise de ingovernabilidade esboçada por um parlamentarismo que não ousava dizer o seu nome. Para se fazer uma idéia, um constituinte (que veio a ser ministro do Supremo, parlamentar e figura de destaque no ministério) confessou ter inserido na Constituição um artigo que não passou sequer pela Comissão Constitucional. Da Constituinte ficou também a denúncia, bancada por Luiz Inácio da Silva, de 300 picaretas que tumultuaram os trabalhos com escavações do interesse público em proveito pessoal. Lula renunciou à oportunidade de propor uma CPI, antes ou depois de dar por encerrado o primeiro mandato e desistir de ser legislador. O  Brasil recomeçava pela aparência nova, sem repelir o assédio do velho aos costumes e às constituições. Na medida do tempo com que a História trabalha, estes vinte anos que se celebram contam, mas são insuficientes. No meio do caminho da democracia  brasileira há uma pedra a ser removida. Que saia, nem que seja aos pedaços.

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Texto originalmente publicado no Jornal do Brasil, 6 out. 2008.



Fonte: Jornal do Brasil & Gramsci e o Brasil.

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