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Um novo prefácio a Liberalismo e sindicato

Luiz Werneck Vianna - 1999
 

Este livro foi escrito há muito tempo, em 1975, datando sua primeira edição do ano seguinte pela Paz e Terra. É verdade que, na medida física do tempo, são apenas 24 anos, mas não é essa a sensação que tenho, após revisitá-lo para esta generosa edição da UFMG - que deverá ser a quarta -, a que sou levado, depois de uma sincera resistência, e, ainda agora, com hesitação, por Heloisa Starling, Newton Bignotto e Wander Melo Miranda, por julgar que ele já cumprira o seu papel e estava na hora de deixá-lo descansar. O país é outro, outros são os seus sindicatos, sobretudo o seu liberalismo, e o seu autor, salvo pela juventude de então e pela continuidade de convicções, ao menos não gostaria de, em tantos aspectos, ser o mesmo.

Reli e me enfrentei com um texto feroz, freqüentemente barroco no estilo, cuja forma carecia, em muitas passagens, de melhor elaboração. Fiz o possível para aliviar o leitor de tudo isso, sem, contudo, levá-lo a perder a perspectiva de que tem diante de si um "trabalho de época", cujas marcas próprias não devem ser apagadas. Assim, quando me referia ao inefável Otávio Pupo Nogueira, um intelectual paulista que assessorava o empresariado de São Paulo nos anos 20, suprimi, agora, a qualificação, e nas minhas críticas a um importante brasilianista americano, de cujas idéias discordava, deixei apenas consignada a minha oposição, eliminando o tratamento brutalmente sarcástico com que brindei sua interpretação sobre a formação do empresariado brasileiro. São dois exemplos, entre tantos, do que o novo leitor não vai mais encontrar aqui, após essa revisão saneadora de um estilo que bem correspondia a como me sentia quando redigi Liberalismo e Sindicato no Brasil.

Escrevi este trabalho em mais um dos períodos de clandestinidade a que me vi obrigado depois de 1964, escondido e amparado pela amizade do casal Paulo Pontes e Bibi Ferreira, que mantinham, em sua residência e para esses fins, um quarto e um banheiro de acesso inteiramente camuflado. Eu vinha para o Rio foragido de São Paulo, onde me fixei, ao sair da prisão, em 1971, deixando para trás mais uma tentativa de me inscrever no "mundo normal", largando às pressas as atividades de professor da Unicamp, e trazia comigo um punhado de roupas e uma sacola de feira, na qual se juntavam os meus cadernos de anotações de pesquisa, alguns livros, e as primeiras sete páginas que tinha conseguido pôr no papel da tese de doutoramento que devia defender na USP.

Daquela vez, o motivo da correria era o da prisão de um companheiro, responsável pela elaboração dos passaportes de um grupo de cerca de dez intelectuais, entre paulistas e cariocas - eu estava incluído na condição de membro do grupo paulista - com os quais, após cerca de dois anos de apaixonados seminários clandestinos de estudo de O Capital, embarcamos para a União Soviética a fim de completarmos a nossa formação marxista na Escola de Formação de Quadros Leninistas (será que o nome era este?), sob a orientação de Anastacio Mansilla, cidadão soviético de origem espanhola, notável professor e extraordinária figura humana.

Isolado do mundo, na cela monacal da casa de Paulinho, e estimulado pela fúria criativa do meu amigo, à época escrevendo Gota d'Água, sua obra-prima, impus-me a disciplina de continuar a tese com o material de que dispunha na minha sacola, embora - há quem lembre? - inexistissem sinais, naquele longínquo meado de 1975, de que o país sairia daquele pesadelo, permitindo-me voltar a pensar que ela seria defendida. Consciente disso, ao elaborá-la não visava a academia, mas o público em geral, apesar de estar movido pela intuição, que se revelou certeira, de uma nova forma de comunicação com este aconselhava o tipo de estilo e de argumento que, naquele momento, nascia na Universidade. De passagem, anoto que Paulinho, genial, como sempre, foi um dos poucos intelectuais fora da Universidade - a sua educação formal não ultrapassou o segundo grau -, que, naquele tempo, compreendeu isso, tendo saudado a nova produção universitária como um fato auspicioso na nossa vida intelectual, como amplamente evidente em sua clássica apresentação de Gota d'Água, a melhor análise política, então publicada, sobre aquele período da ditadura.

Eu não escrevia, então, uma tese, mas um bizarro documento político em forma de tese, e com a leve sensação, sempre que me lembrava dos amigos mortos e do recado que me tinha sido dado ("dessa vez, eles vão te matar"), de que podia estar, simplesmente, redigindo meu modesto testamento.

Como a política é, de ordinário, confusa, e, naqueles tempos de ditadura - quando idéias e informações tinham enorme dificuldade de circulação -, ainda mais, em razão da falta de transparência sobre os processos efetivamente existentes toldar a vista de todos - inclusive "deles" -, tomamos ciência, um certo dia de fins de 1975, de que o regime, de duração prevista até "o próximo milênio", segundo os áulicos, não iria durar tanto assim. Esse dia inesquecível foi o da missa oficiada por Dom Paulo Evaristo Arns, em memória do jornalista Vladimir Herzog, assassinado, sob tortura, na prisão, e que mobilizou milhares de pessoas na Catedral da Sé, em São Paulo, ao final da qual esse amado Cardeal levou ao ato de comunhão vários amigos meus, ateus renitentes, que, atônitos, não tiveram como lhe resistir. Não faltou muito, e meu orientador, Francisco Weffort, sobre cuja grande generosidade não perco a oportunidade de testemunhar, me fez entender que, quando pronto, eu poderia levar a tese à defesa.

Assim, retornei à academia torto, pelas mãos de uma tese que fora apenas um projeto de resistência moral e intelectual dos tempos da casa de Paulinho. Mas, pensando bem, a minha relação com ela nunca foi fácil, apesar de, recentemente, vir cultivando a pretensão de que teria descoberto uma forma de vida republicana - de uso não apenas pessoal, suponho - que não somente a admite, como também necessariamente a requer. Devo, pois, a Liberalismo e Sindicato no Brasil uma forma de acesso à Universidade que me permitiu reconstruir a minha identidade pública em continuidade com o meu passado de militância política, e esse é um dos principais motivos pelos quais me orgulho dele.

Há um outro, este de natureza intelectual. Foi com ele que aprendi a combinar minhas duas formações, em direito e em ciências sociais - sou graduado em ambas -, para mim, até então, incompatíveis, experiência que retomei em Corpo e Alma da Magistratura Brasileira (Rio de Janeiro: Revan, 1997) e em Judicialização da Política e Jurisdicização das Relações Sociais (no prelo); e, muito particularmente, à época absolutamente pioneira na esquerda brasileira, sobre o processo de modernização autoritária do país com base nos estudos agrários de Lenin e no quadro analítico desenvolvido por Gramsci, nas suas famosas notas sobre o Risorgimento, cuja boa recepção por parte da crítica, imagino, o levou a constar, anos a fio, dos programas de graduação e pós-graduação em ciências sociais e em direito, e seja ainda responsável por esta iniciativa temerária dos meus amigos da UFMG.

Desde então, venho procurando levar à frente tal interpretação, como em A Revolução Passiva: Iberismo e Americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997), em cuja apresentação, tomando licença para uma breve transcrição, fiz questão de estabelecer os vínculos do novo trabalho com o meu velho de guerra Liberalismo e Sindicato no Brasil:

Retomar a década de 30 [como se procedeu em Liberalismo...], momento em que se impõe a estrutura burocrático-autoritária sobre o sindicalismo brasileiro, em pleno auge da ditadura militar nos anos 70, importava, desde logo, ter como evidentes os elementos de continuidade entre aqueles dois ciclos autoritários, quer pela preservação do corporativismo sindical, quer pelo regime repressivo às liberdades públicas, quer, ainda, pela opção de ambos de conduzir a expansão capitalista a partir do Estado, mediante a mobilização da violência política, sem falar dos objetivos territorialistas de grande potência que os animavam. Não havia mais o que buscar numa revolução burguesa, na expectativa de que, em nome do moderno e do desenvolvimento das forças produtivas materiais, se chegasse a uma ruptura com o "atraso" e o arcaico - a revolução burguesa já seguia, há tempos, o seu curso, e seus compromissos com a velha ordem social não eram em nada incompatíveis com a aceleração da acumulação capitalista, como, de resto, o chamado "milagre econômico" comprovava [...]. Assim, estudar os anos 30 da perspectiva dos anos 70 [...], importava considerar o processo da revolução burguesa autocrática como de longa duração. Não era outro o argumento desenvolvido pelo Gramsci dos Quaderni, cuja análise estabelecia uma linha de continuidade entre o Risorgimento e a emergência do fascismo na Itália, forma política de imposição autoritária do americanismo naquele país.

Publicado em 1976, Liberalismo e Sindicato no Brasil foi um ato de resistência. Hoje, para mim, é um roteiro - monografia especializada nunca pretendeu ser - de questões a serem aprofundadas para uma interpretação deste nosso complicado país, que não ata nem desata. O que posso esperar dele, nesse encontro com novos leitores, é de que estimule a pesquisa e a ação transformadora.

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Luiz Werneck Vianna é professor do Iuperj. Este prefácio pertence a Liberalismo e Sindicato no Brasil. 4a. ed. rev. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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