SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Exatamente um ano atrás, o Haiti foi sacudido por mais um terremoto dos vários que já atingiram o país, situado sobre uma complexa rede de placas tectônicas e falhas geológicas. Além de ser o mais mortal desde o catastrófico terremoto de 2010 ?foram mais de 2.100 mortos e outros milhares de feridos e desabrigados?, o sismo de 2021 pegou o país caribenho em um momento especialmente conturbado.

Um acúmulo de mazelas que incluiu a pandemia de Covid, a passagem de ciclones tropicais, uma crise política que culminou no assassinato do presidente, a escassez de combustíveis e de eletricidade e o recrudescimento de conflitos violentos entre gangues tornaram o Haiti um lugar extremamente perigoso e estressante de viver para seus moradores.

É o que o chefe da OEA (Organização dos Estados Americanos) chamou de "pior dos mundos", em uma declaração no último dia 8 na qual faz uma rara autocrítica do papel da comunidade internacional na crise haitiana.

Segundo a nota do secretário-geral Luis Almagro, esse quadro é "resultado direto das ações das forças endógenas do país e da comunidade internacional", cuja presença por 20 anos "não foi capaz de facilitar a construção de uma única instituição" e foi "um dos fracassos mais fortes e manifestos já implementados" na cooperação externa.

A comunidade internacional se retirou do Haiti, continua Almagro, deixando para trás "caos, destruição, violência", e hoje "tenta fazer acreditar que uma solução completamente endógena pode prosperar".

Além da OEA, outras instituições têm lançado relatórios e notas sobre a piora da situação no Haiti, da Human Rights Watch a órgãos das Nações Unidas ?o vice-presidente brasileiro, Hamilton Mourão, por exemplo, divulgou uma declaração no mês passado, em nome do Conselho de Segurança da ONU, manifestando preocupação com a escravidão sexual e outros abusos sofridos pela população haitiana.

Mas a presença concreta da comunidade internacional no território haitiano não chega perto da que foi registrada em outros momentos, como durante a Missão de Paz Minustah, de 2004 a 2017, e após o terremoto de 2010.

"A partir de 2011, 2012, muitas instituições começaram a sair, seja porque foram para lá para prestar uma ajuda mais pontual, seja porque as fontes de financiamento foram diminuindo", recorda o antropólogo brasileiro Pedro Braum, da Viva Rio, ONG que atua no Haiti desde 2004. "Algumas não foram embora, mas diminuíram as operações, focaram outras regiões do mundo. Hoje, por exemplo, todo mundo volta os olhos para a Guerra da Ucrânia, tudo se concentra lá. O Haiti não tem mais a importância que já teve. Existe um quase abandono do país."

Galeria Um ano após terremoto e morte de presidente, Haiti enfrenta crise com gangues País atravessa caos social e e sofre com catástrofes Braum, que morou em Porto Príncipe por cerca de 14 anos ?retornou no fim de 2021, mas deve voltar em breve ao país para trabalhar nas ações da ONG?, afirma notar ainda um esgotamento por parte de algumas instituições devido à complexidade do trabalho humanitário por lá. "Eu percebo uma fadiga, um cansaço de muitas organizações diante da dificuldade de trabalhar no Haiti. Para a população local, isso é uma tragédia. Na verdade, em um cenário como o de agora, deveria haver ainda mais ímpeto, mais vontade."

Segundo o antropólogo, muitas pessoas que ficaram desabrigadas pelo terremoto de 2021 ainda não conseguiram voltar para casa. Mas o grande movimento de deslocados internos no país hoje é o dos que fogem não dos efeitos de desastres naturais, mas dos confrontos das gangues que dominam as favelas da capital haitiana.

"Existem campos de desabrigados por causa da violência, alguns recebendo ajuda humanitária de agências estrangeiras ou do governo haitiano, outros sem ajuda nenhuma. Tem vídeos que mostram filas de pessoas saindo com malas na cabeça nos momentos de maior confronto", relata.

De acordo com o brasileiro, que pesquisou em seu doutorado a ação das gangues haitianas ?chamadas localmente de "bases"?, os conflitos se agravaram a partir de 2018, com o aprofundamento das crises econômica e política no país.

No mês passado, o tema voltou ao noticiário internacional após uma violenta batalha entre grupos rivais na região de Cité Soleil, na periferia de Porto Príncipe, deixar mais de de 470 vítimas, entre mortos, feridos e desaparecidos.

"Foi quase uma guerra de trincheiras dentro da favela", diz Braum. "Sempre houve esse enfrentamento nas ruas, mesmo durante a presença das tropas da ONU, mas a partir de 2018 isso piorou. Com a diminuição da atuação do governo nas favelas e cidades, não por acaso cresceu a capacidade de governança dos grupos armados", continua, apontando também uma expansão desses grupos para outras cidades e vias de acesso distantes de Porto Príncipe, algumas em áreas rurais.

Controlando apenas 2 quilômetros da rodovia nacional em Martissant, um subúrbio da capital, essas gangues ganharam poder sobre o fluxo de mercadorias para metade do país, segundo a agência AFP. E, desde junho de 2021, os grupos armados controlam a única estrada pavimentada que leva às regiões do sul haitiano.

Essa disputa por territórios ?e pelo dinheiro que vem das extorsões de comerciantes, entre outras atividades criminosas? se une à dimensão política dessas gangues. Congregadas em federações, as "bases" têm forte conexão com lideranças e partidos políticos, o que agrega aspirações por poder nacional a seus interesses locais.

Refém da instabilidade, a população vive um dia a dia estressante, com dificuldade para se deslocar, comprar comida ou levar os filhos à escola. Muitos sonham em migrar, mas o mundo está mais fechado aos haitianos e tem sido cada vez mais difícil conseguir vistos e mesmo transporte para deixar o país.

"Isso tudo gera uma frustração enorme", diz Braum. "Há pessoas e grupos políticos tentando melhorar o país, mas essa repetição de tragédias gera um cansaço muito grande na população."


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