SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em "O Poderoso Chefão", o mafioso Michael Corleone de Al Pacino diz que aprendeu com o pai a manter os amigos por perto, mas seus inimigos ainda mais. A máxima lembra a estratégia atual do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, que nos últimos meses tem apertado a mão de líderes aliados e se aproximado de países vistos como adversários.

Nesta quinta-feira (15) ele chegou ao Uzbequistão, por onde passou o chinês Xi Jinping e onde o turco vai se encontrar com autoridades locais e com o russo Vladimir Putin em reunião da Organização para Cooperação de Xangai -grupo que busca defender a segurança de países da Ásia e da Ásia Central. A Turquia não integra o colegiado, mas Erdogan insiste em se projetar como moderador em um período de crises entre Ocidente e Oriente.

É a terceira vez que ele se reúne presencialmente com Putin em menos de dois meses. Na última, em Sochi, os dois conversaram sobre ampliar a cooperação nas áreas de comércio e energia -enquanto o restante da Otan, da qual Ancara faz parte, tenta cortar laços econômicos com os russos. Duas semanas depois, o turco foi a Lviv, no oeste da Ucrânia, onde disse estar do lado de Volodimir Zelenski.

Embora tenha reforçado conexões com Moscou, a Turquia ainda é a principal adversária do Kremlin na disputa de influência no Cáucaso e no mar Negro, e Erdogan e Putin estão em lados opostos no conflito entre Azerbaijão e Armênia --que voltou a se acirrar nesta semana.

"Os países da Otan debatem sobre o que oferecer aos turcos para que eles continuem juntos com o Ocidente, mas isso ainda não está definido", diz Dorothée Schmid, analista-chefe do setor de Turquia do Instituto Francês de Relações Internacionais.

Erdogan, de toda forma, já apresentou uma reivindicação, ligada à aceitação para a admissão de Finlândia e Suécia à aliança: que a Europa ajude Ancara a prender militantes do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que ele considera terroristas e estão exilados em países nórdicos.

A dualidade externa, apontam analistas, têm raízes na fragilidade interna. A lira turca registra uma desvalorização histórica em 2022, e a inflação ultrapassa os 80% ao ano -consequências diretas da pandemia de Covid-19 e da Guerra da Ucrânia.

Além disso, Erdogan deve enfrentar nas eleições do ano que vem a mais forte oposição desde que assumiu o poder, em 2003. "A crise econômica tem feito com que ele perca parte do seu eleitorado, principalmente os pobres e a classe média baixa", diz Schmid.

Estaria aí a principal justificativa para a mediação que Ancara buscou desempenhar nas negociações entre Moscou e Kiev para desobstruir exportações de grãos --a Turquia, talvez não por acaso, foi destino de 36% dos navios que partiram da Ucrânia desde os acordos com a ONU.

A oposição a Erdogan se mune também de retórica anti-imigração. O país abriga 3,6 milhões de refugiados sírios que, na visão de parte da população, competem por vagas de empregos. Nas últimas semanas, o presidente turco deu sinais de que pretende voltar a negociar com a ditadura de Bashar Al-Assad --seu antigo rival. Um eventual pacto poderia envolver a deportação de refugiados, aplacando as críticas nessa seara.

A crise econômica contribuiu também para a retomada diplomática que Ancara encampou com outras nações do Oriente Médio, principalmente Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Irã.

"A Turquia precisa de dinheiro, e seus líderes sabem que, hoje, as perspectivas de crescimento são sombrias, porque dependem principalmente dos investimentos da União Europeia, que também está em dificuldades. Por isso Ancara voltou a conversar com as nações do Golfo", afirma Schmid.

Soma-se à mudança de postura de Erdogan o recente acordo com Israel, país com o qual a Turquia não tinha relações desde 2018 --quando 60 palestinos morreram em protestos contra a mudança da embaixada dos EUA para Jerusalém, ideia de Donald Trump. "A questão palestina tem perdido relevância. O mais importante agora é a estabilidade regional", diz Christoph Ramm, pesquisador na Universidade de Berna.

Mas o líder turco manteve a dualidade: dias depois do anúncio com Tel Aviv, ele recebeu Mahmoud Abbas em Ancara e garantiu que a retomada dos laços com os israelenses não enfraquecerá as relações com a Autoridade Palestina.

O cerco de alianças ajuda também a demonstrar autoridade dentro do país. "A Turquia está passando por seu período mais forte política, militar e diplomaticamente", disse ele a milhares de apoiadores no mês passado. Resta saber, agora, se o turco conseguirá sustentar o diálogo moderador com os adversários ou se, como Corleone, terminará sozinho após sacrificar, ainda que indiretamente, seus aliados.


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