SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - À espera de condenações na tribuna da Assembleia Geral da ONU e com relatos de perdas de mais territórios ocupados na sua invasão da Ucrânia, a Rússia de Vladimir Putin resolveu acelerar o processo de anexação de áreas do país vizinho.

Coube ao ex-presidente e hoje adjunto de Putin no Conselho de Segurança Dmitri Medvedev desenhar a motivação: "Invasão de território russo é um crime que nos permite usar todas as formas de autodefesa", disse, ao comentar os pedidos de três administradores pró-Rússia de áreas ocupadas para a realização de referendos sobre a anexação.

"Os referendos vão mudar completamente o vetor de desenvolvimento da Rússia por décadas. E não só para nosso país. A transformação geopolítica do mundo será irreversível assim que os novos territórios estiverem incorporados à Rússia", escreveu em uma postagem no Telegram.

Por autodefesa, Medvedev pode estar pavimentando para o chefe a mudança na política atual, de não fazer mobilização geral, que levou à perda de áreas em Kharkiv (nordeste) e parece colocar em risco as franjas de Lugansk, um das duas províncias do Donbass (leste) que os russos conquistaram em julho.

No extremo da ameaça, a aplicação da doutrina nuclear russa, de emprego de bombas atômicas em caso de riscos existenciais. Terceira Guerra Mundial, em outras palavras. Só os EUA já se comprometeram a enviar mais de US$ 15 bilhões (R$ 76 bilhões) em armas para Kiev, e elas têm feito a diferença na atual ofensiva.

Recebendo credenciais de embaixadores, Putin adiantou o discurso que seu chanceler, Serguei Lavrov, deverá fazer na ONU. Criticou o que considera projeto hegemônico dos EUA, que "controla tudo, a América Latina, Europa, Ásia e África".

"A hegemonia funcionou em fazê-lo já por muito tempo, mas não pode seguir para sempre, a despeito dos desenvolvimentos na Ucrânia", afirmou, de forma algo cifrada e menos bombástica do que o usual sobre o rumo da sua guerra.

O discurso antiamericano é idêntico ao de seu maior parceiro e principal rival estratégico dos EUA, a China de Xi Jinping, com quem Putin encontrou-se na semana passada, ouvindo "preocupações" acerca da guerra, mas depois aumentando a cooperação militar entre os países.

O roteiro para o Kremlin está pronto e não difere do já aplicado à Crimeia, ali sem guerra em 2014, e mesmo no pedido de proteção das duas autoproclamadas repúblicas populares do Donbass, um dos "casus belli" da invasão em fevereiro, quando Putin as reconheceu.

Na segunda (19), os parlamentos locais de Donetsk e Lugansk, as províncias do leste, concordaram em acelerar a organização do referendo, apesar da oposição do FSB (Serviço Federal de Segurança, uma das agências sucessoras da KGB) por motivos de insegurança.

Nesta terça (20), foi a vez do governo de ocupação de Kherson (sul), outra região sob ataque ucraniano, este muito menos bem-sucedido do que o de Kharkiv. Segundo disse no Telegram Vladimir Saldo, o chefe local, "Kherson irá se tornar um ente pleno de um país unido", afirmou. Lá, os russos ocupam cerca de 95% do território.

Em Lugansk, a ocupação é quase total, salvo algumas vilas perto da fronteira com Kharkiv, mas a situação em solo é fluida. A dúvida maior é sobre a fronteira que os russos deverão reclamar em Donetsk, cuja capital provincial homônima é governada por separatistas desde a guerra civil iniciada em 2014, na esteira da anexação da Crimeia, por sua vez uma resposta de Putin à queda do governo pró-Kremlin em Kiev.

Em Donetsk, cerca de 60% do território está em mãos rebeldes e russas, e as forças ucranianas têm posições bem defendidas na província. Na noite de segunda, o presidente Volodimir Zelenski afirmou em Kiev que as tropas russas estão "fugindo em pânico" em vários pontos das frentes de batalha.

Segundo Saldo, o referendo ocorrerá o mais rapidamente possível, e seus estimados 20 mil soldados serão incorporados às Forças Armadas russas.

O embaixador de Lugansk em Moscou, Rodion Mirochnik, deu inclusive pistas do verniz legalista do processo: ele seria submetido à Organização de Segurança de Xangai, a entidade multinacional criada pela China que sediou o encontro Putin-Xi, e aos países do Brics, bloco que une Brasil, Rússia, Índica, China e África do Sul.

É de se especular qual seria a reação do governo de Jair Bolsonaro (PL) a um pedido desses, dado que ele manteve a boa relação com Putin ao longo da guerra e recebeu agradecimentos russos por isso, ainda que o Brasil condene a invasão em si.

Como seria previsível, a Duma (Câmara baixa do Parlamento russo) apoiou com entusiasmo a iniciativa. Significativamente, ela também aprovou nesta terça uma lei endurecendo o regime de punição para quem desertar durante situações de combate ou mobilização geral --deixando assim mais um instrumento pronto para Putin caso ele altere sua política, o que de todo modo parece difícil dado à impopularidade de tal movimento.

O presidente russo está sob pressão. Membros mais linha-dura de sua elite têm se pronunciado em favor de uma guerra mais ampla e destrutiva, envolvendo os números de soldados necessários para alguma vitória --o fracasso em tomar Kiev na primeira semana do conflito se deveu, entre outras coisas, à escassez de tropa.

Os movimentos desta semana parecem ampliar o leque à disposição do líder, que aposta no confronto com o Ocidente para galvanizar o apoio que segue recebendo apesar das críticas pontuais.


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