SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quatro dias depois de 98 afegãos que dormiam no aeroporto de Guarulhos terem sido levados a um hotel da prefeitura, o mezanino do terminal 2 voltou a ser ocupado por outra família de refugiados.

Desta vez, o que chamou a atenção foi a idade do patriarca: com mais de cem anos, Ali Ahmad enfrentou, com filhos e netos, uma jornada de quase um ano para fugir do Talibã.

De cabelos brancos, colete de lã, paletó, calça social e sandália de couro, ele se levantou com dificuldade do colchonete onde tirava uma soneca na tarde de quarta (21) para atender à reportagem --e respondeu todas as perguntas de forma lúcida. O neto Kamram Ahmadi, 19, servia de tradutor do dari para o inglês.

Carrinhos com as malas dos 11 membros da família protegiam colchonetes e cobertores da vista direta dos passantes. Naquele momento, a mulher de Ali, de 86 anos, e a neta mais nova, de 5, também dormiam.

Ali não tem certeza se tem 102 ou 103 anos: se até hoje muitos afegãos acabam não registrando os filhos, quando ele nasceu isso era ainda mais raro. Ele também não sabe o dia e o mês de nascimento, só o ano: 1298 pelo calendário persa, usado no Afeganistão, 1919 no gregoriano.

Seu único documento, o passaporte tirado às pressas, traz um ano diferente, mas Kamram afirma que está errado: seria uma data aleatória colocada por quem lhes vendeu o documento --quase todo imigrante relata que é quase impossível tirar passaportes pelos meios legais no Afeganistão hoje.

Seria ainda mais difícil no caso de Ali e de seus filhos, pois eram todos militares ligados ao governo anterior, derrotado pelo grupo extremista em agosto do ano passado.

Ali diz que era general. Teve sete filhos --cinco ainda vivos--, sete netos e um bisneto. Fala quatro idiomas, pashto, urdu, hindi e dari, versão afegã do persa, e é aficionado por geografia: cita, de cabeça e sem errar, todos os países da América do Sul, da América Central, do Norte e do Caribe. Também gosta de estar atualizado e acessa com frequência o Instagram da BBC em persa no celular dos netos.

A saúde vai bem, e só a dor no ciático o incomoda. Ele também escuta mal de um ouvido, resultado de uma granada que explodiu perto dele uma vez, segundo conta Kamram. Os dois são muito ligados. "Ele me disse: onde você for, eu vou. Nunca vou te deixar sozinho", diz o jovem.

Ali afirma que lutou contra talibãs no passado e repete que eles "não são humanos". "Ele lutou tantos anos pelo Afeganistão e agora não pode fazer nada. Sentimos muito pelo que aconteceu", diz Kamram.

A mulher de Ali veio com o grupo. Khadija conta que faz tanto tempo que estão juntos que nem se lembra da data em que se casaram. Foram prometidos um ao outro desde pequenos pelas famílias, que eram amigas. Ali costuma chamá-la carinhosamente de "rainha das flores".

Ela conta que talibãs foram à sua casa procurar seus filhos. "Disse que não estavam", relata a mulher de aparência frágil, cabelos brancos, vestido preto de inverno e lenço branco fino na cabeça. Ela se lembra bem do outro período talibã, há mais de 20 anos. "Eles dão chibatadas, matam. Fazem o que querem."

Sobre começar do zero em idade tão avançada, Khadija diz que não teve opção. "Meu país era delicioso. Se não fosse o Talibã não teria saído." O Brasil, como em quase todos os casos de migração de afegãos, não era a primeira opção. Eles tentaram obter o visto dos EUA, mas alegam que ele está restrito a militares que trabalharam em divisões específicas das forças especiais, o que não se aplica a Ali e a seus filhos.

Praticamente o único país do mundo que criou um visto humanitário depois do golpe talibã, o Brasil virou destino para milhares de afegãos --mais de 6.000 obtiveram o documento até agora, segundo o Itamaraty.

As fotos do celular de Kamram mostram o jovem com roupas militares do pai, um carro bom e numa casa confortável. Ele diz que os vários meses que passaram no Irã esperando pelo visto esgotaram as reservas financeiras. Depois de dois dias dormindo no chão do terminal 2, a família foi levada para um centro de acolhida temporária gerido pela Prefeitura de Guarulhos junto com a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo.

Ali diz que sente muito orgulho da família e de que não o tenham abandonado. Ele lamenta ter perdido o que construiu para seus filhos --"Todo mundo ama a terra onde nasceu"--, mas seu ânimo é bom. "Estou tão feliz de estar no Brasil. E que o Talibã não está aqui. Quando eu era jovem, li sobre o Brasil e o rio Amazonas nos livros de geografia. E agora eu estou aqui, tão perto, conversando com você."


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