SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A crise energética entre a Rússia e a Europa, anabolizada pelos ataques que atingiram os gasodutos Nord Stream no mar Báltico, subiu mais um patamar nesta quinta (29).
O Kremlin afirmou que os danos aos dois ramais do sistema que controla, atingidos por duas explosões subaquáticas na segunda (26), foram provavelmente feitos por um outro país. "É muito difícil imaginar que um ato de terrorismo desses tenha acontecido sem o envolvimento de um Estado. Isso é uma situação extremamente perigosa que demanda investigação urgente", afirmou o porta-voz Dmitri Peskov.
Sua colega na chancelaria, Maria Zakharova, repetiu a acusação feita na véspera, apontando o dedo para os Estados Unidos. Ela se ampara em uma entrevista dada pelo presidente Joe Biden antes da invasão russa da Ucrânia, em fevereiro, na qual o americano fala que tem meios para impedir o Nord Stream 2 de entrar em operação.
Com efeito, o clima conflituoso na Europa fez com que o segundo ramal do sistema, que foi completado em setembro, nunca entrasse em operação por decisão da Alemanha. O país europeu é o maior parceiro da Rússia no projeto, cuja primeira etapa começou a bombear gás da terra de Putin para a do premiê Olaf Scholz em 2011.
Já a Otan, a aliança militar entre EUA, Canadá e 27 países europeus, divulgou um comunicado em que não diz o nome da Rússia, mas dirige na prática a Moscou uma advertência. "Estamos comprometidos a nos preparar, evitar e defender contra o uso coercitivo de energia e outras táticas híbridas. Qualquer ataque deliberado à infraestrutura crítica dos aliados será respondido com uma resposta unida e determinada", afirmou o texto.
Em português, o clube acusou o golpe, assumindo que a Rússia explodiu seu próprio gasoduto para colocar mais pressão sobre a Europa. O continente reduziu ao mínimo a compra de petróleo russo, mas não se acerta sobre o gás dada a dependência de suas economias, a começar pela maior, a alemã, do produto.
Para erodir o apoio europeu a Kiev na Guerra da Ucrânia, que de todo modo é bem tímido em comparação ao dado pelos EUA, a Rússia tem reduzido o envio de gás ao continente. O Nord Stream 1 estava praticamente inoperante quando foi atacado, e o 2 nunca chegou a funcionar. O gás seguia fluindo por dutos que passam por território ucraniano, apesar do conflito.
A chegada do inverno europeu, em dezembro, assusta os governos, dado que a população de vários países já lida com inflação alta de alimentos e contas de gás que decuplicaram. Na Alemanha, o regulador do sistema energético afirmou nesta quinta que as pessoas deveria poupar até 20% do consumo de gás agora, para evitar racionamentos mais à frente.
A indústria também depende da energia de termelétrica a gás, responsável em 2021 por 23% da matriz do continente. A Rússia forneceu naquele ano 40% das necessidades do produto na região. Usinas a carvão, altamente poluentes, estão sendo reativadas, e os alemães vão adiar o desligamento de suas centrais nucleares.
Os ataques atingiram 3 dos 4 dutos que compõem o sistema, dois para o Nord Stream 1, dois para o segundo ramal. Nesta quinta, a Suécia afirmou ter encontrado um quarto vazamento a partir de bolhas de gás no Báltico, mas não especificou de qual duto seria.
Isso é mais importante do que parece, como apontou em um artigo especulativo sobre a crise o analista Ryan Brigdes, da consultoria americana Geopolitical Futures. Ele aponta para o fato de que as explosões foram controladas de forma a manter ao menos um das linhas operacional, tanto que uma ocorreu às 2h e outra, cinco horas depois.
Bridges afirma que sim, os EUA teriam interesse em prejudicar os russos, mas a precisão aparente da ação sugere que Moscou pode estar por trás do ataque. "Por que a Rússia faria isso? Para demonstrar à Europa que as sanções não estão funcionando, e que o Kremlin é sério quando fala em mudar suas exportações energéticas para a Ásia -convenientemente deixando aberta uma conexão caso os europeus mudem de ideia", diz.
Ele desfia todos os efeitos já visíveis da crise, como o aumento ainda maior dos preços futuros do produto, e lembra que o Kremlin pode "lembrar os governos europeus que eles têm vulnerabilidades que a Rússia nem começou a explorar".
Com efeito, na terça (27) um gasoduto entre a Noruega e a Polônia foi aberto no Báltico, bem próximo da região em que houve o ataque. Como o tema é muito sensível politicamente, além de ensejar risco de guerra, Bridges crê que as acusações tendem a ficar apenas no ar.
Há a questão econômica subjacente: empresas europeias investiram pesado nos Nord Stream, que custaram o equivalente a R$ 130 bilhões, em valores não corrigidos.
Moscou nega tudo isso e Bridges afirma que só está especulando. Mas o cenário mostra que a guerra híbrida apontada pela Otan pode estar apenas começando, num momento em que Vladimir Putin muda o ritmo do conflito na Ucrânia ao mobilizar tropas e ao marcar a anexação de 15% do país vizinho para esta sexta (30).
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