SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Não adiantou a Suprema Corte americana varrer pela porta a liberdade ao aborto, porque o tema voltou pela janela e está aparentemente vistoso no meio da sala.
Em resumo, virou tema eleitoral para o pleito legislativo de meio de mandato, de novembro, no qual os eleitores renovarão um terço do Senado e a totalidade da Câmara.
A revista The Economist notou que uma velha tradição tendia desta vez a não ser respeitada. É aquela pela qual o partido do presidente perde espaço para o partido da oposição. Eis que os democratas de Joe Biden podem não perder o espaço que lhes prognosticaram e ainda garantir uma apertada maioria entre os senadores.
A razão dessa resiliência é justamente o direito ao aborto. Eleitoras e eleitores perceberam que é preciso compensar pelo voto a decisão tomada em junho pelos juízes da Suprema Corte. Eles deliberaram que a interrupção voluntária da gravidez não era mais um direito constitucional, cabendo aos 50 estados decidir, individualmente, se impunham algum grau de restrição.
O tema é levantado por um dos recentes podcasts que a Economist dedica à política americana. Jornalistas e cientistas políticos tratam do aborto com certa surpresa. Não acreditavam que o tema voltasse a ser discutido com a atual intensidade.
"As pessoas me interpelam, e há claramente a transformação disso em tema a partir do qual parte dos eleitores escolherá seus candidatos", diz Abigail Spanberger, democrata que disputa a reeleição pelo 7º distrito do estado da Virgínia.
Mas vamos recuar um pouco e sobrevoar o sistema eleitoral americano. O voto não é obrigatório, e a cada quatro anos, quando se escolhe o presidente, o comparecimento eleitoral é bem mais elevado. Tem variado entre 50% e 60% dos habilitados ao longo dos últimos 50 anos. Dois anos depois, ocorrem as midterms, nas quais o comparecimento é menor, algo em torno de 40%.
O aborto acendeu duas luzinhas neste ano. Tão logo a Suprema Corte tomou sua decisão, cientistas políticos verificaram que havia uma corrida de eleitores que procuravam se habilitar para o voto. Eram 10% a mais que em eleições anteriores. A segunda se acendeu há dias numa eleição parcial. Em votação para preencher a cadeira do 19º distrito de Nova York, uma candidata saiu vencedora por transformar esse direito em forte bandeira de campanha.
Mas temperemos qualquer conclusão apressada. Os republicanos não são sistematicamente adversários do aborto, e democratas não ocupam posição oposta.
Há republicanos próximos do ex-presidente Donald Trump que querem proibir no estado de Michigan o procedimento em adolescentes vítimas de violência sexual e acenam colocar na cadeia os médicos que aceitarem fazê-lo. Mas há no partido um consenso mais moderado, que fixa o limite de 15 semanas para que a gravidez seja cirurgicamente interrompida.
No entanto, o fator Trump provocou uma divisão muito profunda na política dos EUA. Mais ou menos como o fator Jair Bolsonaro, no Brasil. Os dois campos tendem a se radicalizar, embora isso se note apenas no quintal provinciano de pequenas campanhas.
No estado do Arizona, os republicanos, provocados, querem reinstituir a proibição da década de 1910 do século passado, que só permitia o aborto para salvar a vida da paciente. Isso já é lei no Mississipi. Geórgia e Carolina do Sul são dois dos estados em que a proibição, se sair, tende a ser radical. Não é o que ocorre na Pensilvânia, onde republicanos querem apenas algumas restrições.
Caso curioso é o do estado de Kansas. A governadora democrata está certa de sua reeleição, mas sem a vantagem de 20 pontos que já registrou nos tempos em que a defesa do aborto não estava em pauta.
Mas novembro se aproxima, e republicanos e democratas fazem suas contas. Sabem que as midterms permitiriam, se o costume fosse cumprido, que desta vez os democratas perdessem quatro cadeiras no Senado (são ao todo cem, com 50 para cada partido) e 24 entre as 435 cadeiras de deputados federais.
Não é, no entanto, o que deve ocorrer. É mais que possível, por exemplo, que os democratas conquistem uma ligeira maioria de senadores, justamente em razão do crescimento eleitoral do aborto como tema.
As previsões são feitas com sintonia muito fina. Raramente há um partido que estoure com dezenas de pontos de avanço. As vitórias e as derrotas se dão por quantias proporcionalmente pequenas de votos. E é por isso que o aborto tende a adquirir nas urnas um peso para lá de decisivo.
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