SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - As graves crises que se acumulam no Haiti --política, humanitária, sanitária e de segurança-- tiveram um novo pico quando milhares de pessoas tomaram as ruas da capital, Porto Príncipe, para protestar contra um pedido do governo por ajuda do exterior.

A manifestação ocorreu na segunda-feira (10), dias depois que o primeiro-ministro, Ariel Henry, solicitou formalmente à comunidade internacional uma "força armada especializada" para "deter, em todo o território" as ações de gangues no país.

Os manifestantes marcaram posição contra a perspectiva de uma nova intervenção estrangeira e exigiram a renúncia do premiê --considerado ilegítimo por parte da população desde que tomou posse do cargo na esteira do assassinato do então presidente Jovenel Moïse.

Além disso, uma parcela dos haitianos considera traumática a missão de paz das Nações Unidas que atuou no país de 2004 a 2017. Embora fosse uma ação de ajuda humanitária, a iniciativa gerou uma série de acusações de estupro a membros das tropas da ONU e levou a cólera à ilha, dando origem a uma epidemia que fez quase 10 mil vítimas.

Os protestos desta segunda terminaram em embates violentos entre os manifestantes e a polícia --várias pessoas foram baleadas e ao menos uma mulher morreu. Organizadores dos atos responsabilizam as forças de segurança pela morte. "Esta jovem não representava nenhuma ameaça. Ela foi morta expressando seu desejo de viver com dignidade", afirmou um dos participantes, sob anonimato, à AFP.

O Haiti tem sido palco de manifestações marcadas por violência e saques há semanas. O gatilho foi uma decisão do governo de acabar com os subsídios para gasolina, diesel e querosene, aumentando os preços em cerca de 50%. Em resposta, uma gangue bloqueou o porto de Varreux, principal porta de entrada dos produtos importados do país.

A falta de combustível provocou caos no transporte e forçou comércios e hospitais a interromperem as atividades. A tomada do porto também levou à escassez de água engarrafada no momento em que o país vive um novo surto de cólera, controlada com a intensificação de medidas de higiene. Um porta-voz da ONU afirmou que seus enviados ao local reportaram 16 mortes e 32 casos confirmados da doença até esta terça-feira (11).

Os problemas se acumulam sobre uma nação que, há mais de um ano, foi sacudido por um terremoto, o mais mortal desde 2010 --quando houve um tremor ainda mais grave, com mais de 200 mil óbitos--, e cujas mazelas incluem ainda o recrudescimento de conflitos violentos entre gangues, a passagem de ciclones tropicais, a pandemia de Covid e uma crise política que culminou, ao mesmo tempo em que ganhou novo fôlego, com o assassinato de Moïse, em um ataque a tiros em sua própria casa.

O embaixador do Haiti em Washington, Bocchit Edmond, fez referência ao caso nesta segunda, ao pedir que EUA e Canadá liderem uma força-tarefa para confrontar as quadrilhas que o governo culpa pela crise humanitária. À Reuters, ele disse que há "se nada for feito rapidamente, há o risco de um novo presidente [ser] morto no Haiti".

Na última sexta-feira (7), o Ministério de Relações Exteriores canadense havia reafirmado o compromisso dos países-membros da OEA (Organização dos Estados Americanos) de ajudar os haitianos a superar os complexos desafios da ilha caribenha. Um dia depois, no sábado (8), os EUA declararam que o pedido de ajuda do primeiro-ministro estava sob análise.

Na mesma data, centenas de ativistas se reuniram em frente à Casa Branca com cartazes estampados com a bandeira do Haiti em que se liam mensagens do tipo "deixem os haitianos decidirem o próprio futuro". Parte da população acredita que Washington é responsável por manter Ariel Henry no poder.

O premiê assumiu o cargo em julho de 2021, pouco depois do assassinato de Moïse, que o tinha indicado ao posto. Dois meses depois, foi acusado pela Procuradoria-Geral de ter participado do crime. Henry demitiu o responsável pela acusação, aprofundando a crise política interna, e adiou indefinidamente as eleições sob justificativa de instabilidade.

Seu governo vem atuando interinamente desde aquela época. Muitos afirmam que a violência das gangues, que controlam vastas porções do território do país, tornariam um pleito impossível hoje.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, propôs no domingo "uma rápida força de ação" para ajudar a polícia haitiana a confrontar esses grupos armados, mas não indicou se o próprio organismo multilateral lideraria essa iniciativa.

A entidade enviou milhares de soldados e policiais ao país na chamada Minustah (Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti). A missão teve comando militar do Brasil pelos 13 anos que durou, e é propagandeada pelas Forças Armadas nacionais como um de seus maiores feitos.

Na prática, contudo, o saldo da ação decepcionou --em entrevista à Folha de S.Paulo, o ex-comandante da missão, o general Santos Cruz, disse que a ONU não pode ser culpada pelo fracasso da iniciativa porque seu objetivo nunca foi administrar a nação e atribuiu as crises do Haiti à "instabilidade estrutural".

A atuação dos brasileiros na ilha divide opiniões entre a população local. Enquanto alguns afirmam que os militares ajudaram a protegê-la, outros dizem que o uso da força foi excessivo.


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