MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) - Antonio Scurati, 53, começou há quase dez anos a pesquisa para uma série de romances documentais sobre o fascismo italiano, inaugurado há cem anos por Benito Mussolini. Desde então, o cenário mundial se transformou por completo, com a ascensão de partidos e personagens da ultradireita nacional-populista por meio das regras democráticas.
Poucos dias após o lançamento do terceiro volume da série, o movimento chegou ao seu auge na Itália, com a vitória do Irmãos da Itália, de Giorgia Meloni --líder que começou a vida política num partido lançado em 1946 por integrantes da ditadura fascista.
"Tudo foi normalizado, não causa mais escândalo", diz, sobre o período entre o primeiro e o mais recente livro. "A Itália mais uma vez será um laboratório político, uma espécie de vanguarda da retaguarda."
Traduzida em 40 países e lida por 1 milhão de pessoas, a série é retomada com "M - Os Últimos Dias da Europa", que percorre de 1938 a 1940, período da aliança de Mussolini com a Alemanha nazista, da adoção das leis raciais e da entrada do país na Segunda Guerra. Na Itália, o livro encabeça a lista dos mais vendidos; no Brasil, os dois primeiros volumes foram lançados pela editora Intrínseca.
À Folha de S.Paulo Scurati comenta as semelhanças e diferenças do fascismo e do populismo de hoje e defende a refundação do antifascismo. "Ele não deve estar de maneira alguma sob as bandeiras da esquerda."
PERGUNTA - Por que achou necessário incluir um aviso, no início do livro, sobre fatos históricos que poderiam parecer inverossímeis?
ANTONIO SCURATI - Nos três livros, colocamos o aviso de que todos os fatos, personagens e diálogos são comprovados historicamente. Mas, neste volume, quis reforçar que, devido ao nosso desconhecimento do que foi o fascismo e pelo fato de não termos acertado as contas até o fim com nossa história, certos aspectos da infeliz decisão que levou Mussolini a se aliar a Hitler e a desencadear a Segunda Guerra poderiam parecer implausíveis, uma invenção do escritor. Mas não são.
Quais são esses momentos?
A. S. - O fato que Mussolini fosse totalmente ciente do total despreparo militar da Itália. Que fosse capaz de ver claramente o traço demoníaco do nazismo, mas de ter ido em frente por achar mais conveniente. E que, apesar de o antissemitismo não representar um pilar ideológico do fascismo, ele decide sacrificar os judeus italianos, em um cálculo desprezível.
De um lado, Mussolini se dá conta de que está acompanhado de um aliado incontrolável em sua obsessão de conquista. Mas, de outro, é vítima de um autoengano. Continua a acreditar ser o dono do jogo, o que manobra Hitler e não o contrário. O povo italiano não quer a guerra, muito menos ao lado dos nazistas. Entre a realidade desagradável e complexa e a imagem que tem de si mesmo, ele escolhe a última.
Os políticos populistas de hoje também são acometidos por esse autoengano?
A. S. - Sim, no sentido de que, entre a realidade com suas complexidades e as falsas soluções retóricas, escolhem sempre a última. É um traço do populista, que reduz a política à comunicação, ao proclamar coisas como "construiremos um muro", "fecharemos os portos", contornando o confronto real com problemas inextricáveis. Quase uma negação psicótica.
No terceiro livro o sr. escreve dos medos do próprio Mussolini. O que ele temia?
A. S. - O medo é o sentimento de base do fascismo, a paixão política sobre a qual Mussolini constrói seu poder e algo que reaparece na ligação com o nazismo. Mussolini tem medo de Hitler, de que, depois de invadir a Áustria em 1938, ele desça até a Itália e possa traí-lo --o que de fato aconteceu anos depois.
O medo é outra ligação com a direita populista de hoje?
A. S. - Certamente. Mussolini vinha do Partido Socialista Italiano, que tinha como símbolo o sol nascente que representava o futuro. Quando é expulso, ele percebe que há uma única paixão mais poderosa que a esperança: o medo da esperança dos outros. Naquele caso, da revolução socialista. E ele aposta tudo em alimentar o medo. Depois, transforma medo em ódio, um sentimento passivo a outro ativo. O populismo fascista reduz toda a complexidade dos problemas reais em um único inimigo, uma simplificação brutal. Há cem anos, era o socialismo. Hoje, pode ser o imigrante.
O livro narra momentos cruciais antes da Segunda Guerra. Que comparações podem ser feitas com a Guerra da Ucrânia?
A. S. - O tipo de poder que Vladimir Putin instalou na Rússia, com esse Estado policial, a necessidade de apoiar seu poder em uma retórica neoimperialista, lembra muito o totalitarismo imperfeito baseado em uma ditadura pessoal de Mussolini. E o expansionismo lembra, às vezes com simetrias assustadoras, o de Hitler. O uso de armas para defender uma minoria da mesma língua que está além das fronteiras e supostamente estaria sendo perseguida. Foi assim com Hitler na Áustria, na Tchecoslováquia, na Polônia, e tem sido assim com Putin na Tchetchênia, na Geórgia, na Crimeia, na Ucrânia.
Em breve a Marcha sobre Roma completa cem anos. Sobrou algum traço desse golpismo na ultradireita de hoje?
A. S. - À diferença de cem anos, esses políticos chegam ao poder se movendo dentro das regras do jogo democrático, ainda que desprezando-as. Esse tipo de alarme não só é injustificado como nos distrai do verdadeiro perigo, que não é uma supressão da democracia, mas sua deterioração qualitativa, que já está em curso há muitos anos.
Desde que o sr. começou sua pesquisa para a série, o que mudou em relação à direita radical?
A. S. - Comecei mais ou menos em 2013. A Itália tinha um Matteo Renzi [premiê entre 2014 e 2016] triunfante. O que mudou? Tudo foi normalizado, não causa mais escândalo. A Itália mais uma vez será um laboratório político do que vai acontecer em outro lugar, uma espécie de vanguarda da retaguarda, como foi com Silvio Berlusconi, nos anos 1990, e com Matteo Salvini.
Há dois níveis de normalização. O moral, com o fato de que uma classe dirigente que ainda denota simpatias pelo fascismo possa governar. E o político, com as consequências de decisões que essa direita --objetivamente reacionária-- gera.
Como vê o uso da tríade "Deus, pátria e família" por Meloni e, no Brasil, por Jair Bolsonaro?
A. S. - Acho chocante que, em 2022, possa existir esse slogan. É isso que demonstra de maneira evidente que se trata de uma cultura política reacionária. Esse lema vem do pensamento de Giuseppe Mazzini, um dos pais da unificação italiana. Em sua concepção, assume um significado de emancipação. Hoje, dois séculos depois, significa propor uma perspectiva de retorno a uma sociedade em que o pai pega sua autoridade do pai da pátria, o qual a recebe diretamente de Deus. Significa que há só um Deus, uma única pátria e um só tipo de família. Um slogan amplamente usado por Mussolini durante 20 anos de fascismo.
Como vê a tentativa das forças de oposição a essa ultradireita, não só na Itália, de vincular esses políticos ao fascismo? Em uma campanha eleitoral isso pode tirar votos?
A. S. - Não, justamente porque a coisa foi normalizada. A questão moral desapareceu, com o eclipse do antifascismo ao longo do século 20, aquele movimento que colocava como prerrogativa o fato de que, se você quiser fazer parte da sociedade civil ou da política, precisa se declarar antifascista. Coloquei Mussolini como protagonista porque senti que deveria contribuir para renovar o antifascismo sobre bases que não fossem ideológicas.
O antifascismo foi usado com tanta frequência nas últimas décadas --de maneira muitas vezes instrumental por pessoas, inclusive líderes políticos, que não eram os mais qualificados para isso-- que se tornou uma palavra vazia. Meu projeto faz parte da visão de que o antifascismo deve ser refundado sobre novas bases. Não deve estar de maneira alguma sob as bandeiras da esquerda. Deve ser uma nova consciência, civil e cívica, de todos os democratas, que é um campo muito amplo. Significa reafirmar a superioridade ética, política e econômica da democracia plena, liberal. Os Camisas Negras não vão voltar, estamos diante de defensores de uma democracia autoritária.
Raio-X | Antonio Scurati, 53
Nascido em Nápoles, já venceu o Prêmio Strega, o mais importante da literatura italiana. Professor de literatura contemporânea na Universidade de Comunicação e Línguas de Milão, também é colunista do jornal La Stampa e ensaísta.
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