SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em uma sinalização de que a pressão no campo de batalha se faz sentir no mundo ideal desenhado pelo Kremlin, o governo da Rússia afirmou nesta segunda (3) que não sabe quais são as fronteiras das quatro regiões que declarou anexadas na sexta-feira (30).

"Nós vamos continuar a nos consultar com as pessoas que vivem nessas áreas", afirmou o porta-voz Dmitri Peskov, ao ser questionado por um repórter acerca do status das duas áreas anexadas do sul ucraniano, Kherson e Zaporíjia.

Na primeira, o domínio russo é quase total, mas nesta segunda o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, disse ter reconquistado algumas vilas na região. Na segunda, a faixa norte do território nunca chegou a ser tomada pelos russos, que pararam seu avanço na altura da usina nuclear homônima, a maior da Europa.

Enquanto isso se desenrola, a Duma (Câmara baixa do Parlamento) aprovou de forma unânime, mesmo sem definição de fronteiras, a anexação condenada pela comunidade internacional nesta segunda. O Conselho da Federação, equivalente ao Senado, o fará na terça (4), como é previsível.

Peskov não falou sobre o Donbass, área do leste que foi o ponto de origem da guerra, no conflito civil inciado em 2014 após Vladimir Putin anexar a Crimeia como retaliação pela derrubada de um governo aliado em Kiev, visando evitar a entrada da Ucrânia nas estruturas ocidentais da União Europeia e da Otan.

Lá, Putin anexou na sexta Lugansk, onde o controle russo é quase completo, e Donetsk, que tem cerca de 40% ainda sob administração ucraniana. No sábado, a Rússia abandonou o bastião de Liman, no oeste de Donetsk, para evitar o cerco a aproximadamente 5.000 soldados na cidade.

Territorialmente não significa muita coisa, mas simbolicamente foi uma grande derrota de Putin, já que a cidade havia passado a ser russa na véspera. Isso testa a retórica belicista do presidente, que prometeu usar até armas nucleares para defender o que considera novas partes da Rússia.

Os termos vagos do Kremlin sobre as fronteiras visam também não estabelecer linhas vermelhas que obriguem Putin a dizer a que veio. Zelenski, estimulado pelo Ocidente, parece estar dobrando a aposta num colapso militar russo.

Os EUA já disseram ter alertado Putin acerca das "consequências horríveis" do emprego de talvez armas nucleares táticas, de baixa potência relativa e menos contaminação radioativa do ambiente. Em uma entrevista à rede ABC no domingo (2), o general da reserva David Petraeus, ex-diretor da CIA, exemplificou o que seria isso.

Segundo ele, os EUA não dariam uma resposta nuclear, mas poderiam "destruir todas as forças russas em território ocupado" e afundar toda a Frota do Mar Negro, que fica em Sebastopol, na Crimeia. O que ele não explica é o risco embutido de iniciar uma guerra total entre Washington e Moscou, potencialmente apocalíptica porque envolveria os donos de 90% das armas atômicas do mundo.

Enquanto o impasse continua, o inferno astral de Putin continua -não só metaforicamente, para quem acredita nisso, já que o líder faz 70 anos na sexta (7). Depois de o aliado tchetcheno Ramzan Kadirov criticar a condução da guerra no fim de semana e pedir o uso de armas nucleares táticas, outro membro da linha-dura putinista veio a público falar mal das Forças Armadas.

E não foi qualquer um. Em um comunicado, o fundador do grupo mercenário Wagner, Ievguêni Prigojin, apoiou Kadirov e completou: "Todos esses bastardos têm de ser mandados descalços para a frente de batalha com pistolas automáticas". No caso, os bastardos eram os alvos da crítica de Kadirov, o comando das Forças Armadas e os generais indicados para lidar com a guerra.

Prigojin é conhecido como o "chef de Putin", pois seu conglomerado cuidava dos serviços de alimentação do Kremlin. Peskov foi questionado acerca do presidente tchetcheno e disse que ele tinha direito de se expressar, "mas são tempos muito emocionais, e emoções têm de ser excluídas de avaliações".

O alvo principal da dupla é o chefe do Estado-Maior russo, Valeri Gerasimov. O problema para eles é que derrubar o número 3 da cadeia de comando militar do país implica um ataque ao número 2, o ministro da Defesa Serguei Choigu, que o colocou no comando. E, claro, Putin, que manda nos dois.

Além de Prigojin e de Kadirov, houve também uma mudança de tom narrativo na onipresente TV estatal russa. "Eu realmente queria que nós atacássemos Kiev e a tomássemos amanhã, mas sabemos que a mobilização parcial vai demorar. Por um período, as coisas não serão fáceis para nós", disse o apresentador ultranacionalista Vladimir Soloviev no domingo.

Na semana retrasada, Putin determinou a mobilização de ao menos 300 mil reservistas para suprir a falta de pessoal na guerra. O movimento gerou muitos protestos e fuga de russos para o exterior, mostrando o motivo de o Kremlin tê-lo protelado por tanto tempo: a guerra está em casa agora.

Há tentativas de corrigir rota: nesta segunda, o governador de Khabarovsk (Sibéria), Iuri Laiko, disse que era preciso coibir "abusos" no alistamento e determinou que milhares de convocações fossem canceladas por não preencherem os requisitos legais.


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