PETRÓPOLIS, RJ (FOLHAPRESS) - Uma das figuras mais emblemáticas da América Latina e da política de seu país, a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, tem um encontro marcado com a Justiça nesta terça-feira (6). É quando chega ao fim o julgamento do caso em que é acusada de ter liderado uma "extraordinária matriz de corrupção" ao lado do marido, Néstor Kirchner (1950-2010), quando os dois governavam o país.
O processo apura irregularidades na concessão de obras públicas. O Ministério Público Fiscal argentino afirma ter comprovado a existência de uma associação ilícita, entre 2003 e 2015, que tinha no topo de seu funcionamento os chefes de Estado. Segundo o promotor Diego Luciani, os supostos ilícitos começaram no governo de Néstor Kirchner --que presidiu a Argentina entre 2003 e 2007-- e continuaram no mandato de Cristina, de 2007 a 2015.
Cristina nega as acusações, e afirma que elas não passam de uma tentativa de perseguição política pelo Judiciário.
Entenda o processo, que ficou conhecido como "Causa Vialidad", abaixo:
Quais são as acusações contra Cristina Kirchner?
A vice-presidente é acusada de liderar um esquema de desvio de verbas para vias e estradas públicas na província de Santa Cruz, na Patagônia ?reduto político dela e de seu marido e antecessor na Presidência, Néstor Kirchner (1950-2010).
Nas palavras da Promotoria argentina, Cristina seria "chefe de uma associação ilícita e de uma gestão fraudulenta que causou danos à administração pública".
Quando os supostos crimes teriam ocorrido e quem são os envolvidos?
Outras 12 pessoas também são alvos do processo, que enfoca o período de 12 anos em que os Kirchner ocuparam o poder.
De acordo com a Promotoria, os envolvidos teriam desviado verbas continuamente para a Austral Construcciones, construtora que venceu 78% dos editais para obras públicas na província de Santa Cruz na época. Ainda segundo o órgão, foram constatadas irregularidades nos 51 contratos firmados entre a empresa e o governo, no valor de 46 milhões de pesos. Destes, apenas 27 foram completados, e só 3 deles a tempo.
A Austral Construcciones pertence a Lázaro Baéz, empresário próximo do casal Kirchner também réu nesta ação e condenado em outra por lavagem de dinheiro.
O que a vice-presidente pode enfrentar se for condenada?
O promotor Diego Luciani solicitou uma pena de prisão de 12 anos à Cristina. Ele também pediu que ela seja impedida de concorrer a cargos públicos para o resto da vida e que devolva aos cofres públicos 5,3 bilhões de pesos (R$ 200 milhões).
Também foram pedidas penas de entre 5 e 12 anos para os outros 12 acusados, entre eles Baéz e o ex-ministro do Desenvolvimento Julio De Vido.
O que a sua defesa alega?
A defesa da vice-presidente bate na tecla de que ela é vítima de "lawfare" ?isto é, de que o Judiciário, em conjunto com a imprensa, a persegue devido a razões políticas. Ela ainda acusa os promotores Diego Luciani e Sergio Mola de serem parciais.
Em entrevista recente à Folha de S.Paulo, Cristina comparou sua situação à de Lula, que foi condenado pelo então juiz Sergio Moro e por tribunais superiores na Operação Lava Jato mas teve os processos anulados pelo STF (Supremo Tribunal Federal) por razões técnicas.
Como a população da Argentina se posiciona diante do caso?
Como quase tudo relacionado ao nome de Cristina Kirchner, o povo argentino se divide quanto à questão. Parte da população acusa a vice-presidente de corrupção, enquanto o restante acredita que ela é vítima de uma perseguição.
O apoio popular à vice-presidente se tornou mais visível depois que a ela foi alvo de uma tentativa de homicídio em frente à sua casa, em Buenos Aires, no início de setembro. Um dia depois, cerca de 500 mil pessoas foram às ruas para protestar contra o ataque. Mesmo vivendo uma disputa interna de poder com Cristina, o presidente Alberto Fernández decretou a data como um feriado nacional ?o que foi interpretado por líderes da oposição como oportunismo político.
Quais são as próximas etapas do processo, e até quando ele pode se estender?
Uma vez que o veredito for alcançado, as partes podem apelar para instâncias superiores ?a Câmara de Cassação Penal e a Corte Suprema, respectivamente. A última poderia se pronunciar sobre o caso até 2025.
Quais as consequências políticas de uma possível condenação?
O processo não impede Cristina de concorrer a cargos públicos nas eleições do ano que vem. Mesmo que ela seja considerada culpada, ela só perderia seus direitos políticos quando se encerrassem as vias de apelação, isto é, quando o caso chegasse à Corte Suprema.
A própria atuação política de Cristina a distancia da prisão. Por ser vice-presidente, ela tem hoje imunidade parlamentar garantida até o fim do ano que vem, quando termina o seu mandato. Para ser julgada antes disso pela Corte Suprema, o Congresso teria de votar um impeachment de suas funções ?e não só não há votos suficientes para isso hoje, como a política também é líder do Senado.
Cristina ainda manteria a imunidade caso se candidatasse e fosse eleita nas eleições do ano que vem. Embora o peronismo ainda não tenha definido seu candidato, é possível que ela dispute a corrida para a Presidência ou para o Senado.
De todo modo, eventual condenação teria forte valor simbólico nas eleições que se avizinham. Não há ainda candidatos claros para a disputa presidencial de 2023, mas alguns nomes já se perfilam. Do lado governista, peronistas se dividem entre a reeleição de Alberto Fernández, a volta de Cristina ou um nome da nova geração; nesta, são citados o chanceler Santiago Cafiero, ligado à ala "albertista", o ministro do Interior, Wado de Pedro, e o governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof, fiéis kirchneristas.
Este é o único processo a que Cristina responde na Justiça?
Além desse caso, ela ainda responde a outras cinco acusações de corrupção, relacionadas ao suposto uso de hotéis de propriedade da família Kirchner, na Patagônia, em esquema de desvio de dinheiro público, enriquecimento ilícito e evasão de divisas. Os filhos do casal, o hoje deputado Máximo e Florencia Kirchner, também são acusados de envolvimento e poderiam ser condenados à prisão.
Em outubro do ano passado, foi arquivado o caso no qual Cristina era acusada de acobertar os responsáveis pelo atentado contra a associação judaica Amia, em Buenos Aires, ocorrido em 1994, e que deixou 85 mortos e 300 feridos.
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