WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) - O direito ao aborto nos EUA moldou o debate público no país em 2022 em meio à eleição legislativa, principalmente após a decisão da Suprema Corte que pôs fim a cinco décadas de amparo legal das instâncias federais às mulheres que optassem pelo procedimento.
Agora, passadas as midterms --eleições de meio de mandato--, a política partidária dos EUA se reorganiza para o pleito presidencial, e o tema já desponta como um dos tópicos centrais para 2024.
Na última semana, o governador da Flórida, o republicano Ron DeSantis, cotado como um dos nomes de maior peso para disputar uma vaga à Presidência daqui a dois anos, afirmou que está "ansioso para assinar uma grande legislação pró-vida".
Questionado sobre a possibilidade de uma "lei da batida do coração", como são chamadas normas de outros estados que proíbem o aborto quando batimentos cardíacos do feto forem detectados, o que ocorre em geral em torno da sexta semana de gestação, DeSantis afirmou: "É algo que eu sempre disse que faria".
Outros republicanos também já se manifestaram, como o ex-vice presidente Mike Pence, que afirmou em entrevista no fim de novembro que "um dos maiores legados" do período em que foi vice de Donald Trump foi "restaurar a santidade da vida no centro da legislação".
Do outro lado, presidente Joe Biden repete tanto quanto pode a meta de transformar o direito ao aborto em lei federal e assinou uma série de decretos nos últimos meses nas margens do que pode fazer como presidente, como proteger mulheres que viajam para fazer o procedimento e proibir que sofram discriminação no trabalho ou estudos.
Apesar da divisão entre democratas e republicanos no alto escalão, a discussão acabou mais complexa do que se imaginava, e a questão do aborto não se mostrou uma disputa só entre esquerda e direita.
Quando, em 24 de junho, a Suprema Corte suspendeu a chamada Roe vs. Wade, decisão de 1973 que entendia que o aborto era um direito garantido na Constituição americana, a expectativa era a de que a decisão seria a senha para movimentos antiaborto e Legislativos estaduais implementarem políticas cada vez mais restritivas.
O que se viu, porém, foi o oposto. A defesa do direito de interromper a gravidez organizou politicamente mulheres mesmo em estados mais conservadores, e o recado mais claro veio nas midterms, as eleições legislativas que aconteceram em novembro e renovaram a Câmara e parte do Senado.
A princípio, as pesquisas de opinião apontavam que a inflação descontrolada no país puniria o Partido Democrata, de Joe Biden, e daria maioria no Legislativo para o Partido Republicano.
Depois da decisão da corte, porém, as candidaturas democratas ganharam tração até em regiões mais conservadoras no interior do país, com mulheres se registrando para votar (o sufrágio não é obrigatório nos EUA) e rejeitando candidatos antiaborto. O resultado foi que os democratas não só mantiveram como ampliaram a maioria no Senado, ao contrário dos prognósticos. Na Câmara, perderam, mas por margem muito mais estreita do que o previsto inicialmente.
A antropóloga Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora de direitos reprodutivos, afirma que "a questão do aborto ultrapassa as fronteiras tradicionais que entendemos sobre partidos e agendas."
"A história do Partido Republicano nos EUA até os anos 1970 e 1980 não era de uma restrição à criminalização do aborto. Isso é algo muito recente", diz. "A questão do aborto se constrói de uma maneira suprapartidária", resume, citando o exemplo oposto no Brasil, onde "partidos mais ao que chamaríamos à esquerda têm concepções morais ou conservadoras em matéria de aborto".
Esse aparente contrassenso na questão da agenda é visto com mais clareza nos legislativos e tribunais estaduais, verdadeiros campos de batalha da questão do aborto nos EUA, uma vez que a possibilidade de aprovar uma legislação nacional sobre o tema hoje é pequena.
Em Michigan --governado por uma democrata, mas cujo Legislativo local é controlado por republicanos--, os eleitores conseguiram fazer uma emenda na Constituição estadual protegendo o direito ao aborto. No Kansas e no Kentucky, mais republicanos, eleitores rejeitaram emendas que diziam que não havia direito ao aborto no estado.
Mesmo assim, a situação está longe de ser resolvida, e hoje quase 35 milhões de mulheres em idade reprodutiva vivem nos estados em que o aborto está proibido total ou parcialmente, segundo dados do governo.
A decisão da Suprema Corte ainda incentivou mudanças em outras áreas, e houve um movimento para transformar em lei pautas de costumes que eram garantidas por determinação do tribunal.
Em novembro, o Congresso dos EUA aprovou o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que até então era garantido apenas pela corte máxima.
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