SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - José Ramos-Horta, presidente do Timor Leste e ganhador do Nobel da Paz em 1996, gosta de andar em sua Vespa vermelha apenas aos fins de semana. E pela manhã, quando há menos trânsito. Mas os engarrafamentos na capital, Díli, não se comparam aos de São Paulo, diz. "O timorense nunca tem pressa."
Um cenário que pode mudar nos próximos anos. Timorenses devem ficar mais apressados e talvez mais estressados se sua projeção estiver correta: o Timor Leste caminha para estreitar laços no Sudeste Asiático e, possivelmente, alinhar-se mais a potências regionais.
Único lusófono na Ásia, o país espera ingressar na Asean, a Associação dos Países do Sudeste Asiático, até 2025, o que conferirá novo status na região 20 anos após a conquista da independência.
Com isso, a nação de 1,3 milhão de pessoas quer se colocar como porta de entrada para quem quiser expandir mercados na região ?Brasil incluso. "Timor pode ser um pivô econômico. Empresas que querem expandir no Sudeste Asiático podem se instalar no Timor Leste."
O presidente, porém, não está disposto a pagar a conta da emergência climática, que afirma não lhe caber. "Petróleo e gás serão motor da nossa economia pelos próximos 20, 30, 40 anos. Não vamos abdicar dessa riqueza. Não ligo para discursos ocidentais em relação a isso."
Ramos-Horta falou com a Folha por telefone, no dia 1º de janeiro, de Brasília, onde esteve na cerimônia de posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Ainda que cheio de elogios ao petista, ressalva que moderou expectativas porque sabe que, a despeito de querer uma política externa expressiva, Lula terá a governabilidade como principal desafio.
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Folha - O que o Timor Leste espera do governo Lula?
José Ramos-Horta - Lula e seu time vão enfrentar uma situação doméstica muito difícil. A prioridade, imagino, será a governança, o trabalho com o Congresso, a recuperação econômica, a redução dos conflitos e a incrível intolerância de parte dos apoiadores de Bolsonaro. Isso vai absorver muito a atenção.
Prefiro não ter demasiadas expectativas por simpatia e compreensão da situação do Brasil. No entanto, ao contrário de 15 anos atrás, quando o Timor Leste não tinha muitas disponibilidades financeiras, hoje a situação é muito positiva. O Brasil poderia disponibilizar o know-how e a tecnologia nas áreas de agricultura, segurança alimentar e combate à fome, e o Timor financiaria. Não haveria investimento direto do Brasil. Também há espaço na área de educação, para termos mais brasileiros lecionando nas nossas universidades. Hoje não temos um único professor brasileiro, sendo que já tivemos 50.
Folha - O programa de cooperação [na educação] foi encerrado em 2016...
José Ramos-Horta - Sim, a responsabilidade é partilhada. A parte timorense não soube fazer lobby para manter os programas e aumentá-los. Sendo prevista a adesão do Timor à Asean nos próximos anos, o país começa a ser um pivô interessante no plano econômico, em que passa a fazer parte de uma economia regional de 700 milhões de pessoas. Empresas brasileiras que querem expandir seus interesses no Sudeste Asiático podem se instalar no Timor Leste.
Folha - O Timor é o único país asiático na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). A entidade tem conseguido atender aos anseios do país? Ou está aquém de seu potencial?
José Ramos-Horta - É ilusão falarmos da CPLP na dimensão econômica. As relações econômicas brasileiras são com América Latina, EUA e Europa. As do Timor Leste são com países vizinhos: Indonésia, Austrália, China. A CPLP pode ser importante na coordenação para o know-how dos países no combate a doenças como malária e dengue, e também nas áreas de educação e cultura.
Folha - Quando o país deve ingressar de vez na Asean?
José Ramos-Horta - Já estamos trabalhando em um roteiro para o ingresso. Isso pode ser concluído ainda este ano ou, no mais tardar, em 2025. Mas já participamos de todas as reuniões da associação.
Folha - Ainda sobre economia, um dos principais desafios globais é o combate às mudanças climáticas. O petróleo ainda é protagonista no Timor Leste. O que estão fazendo para mudar isso?
José Ramos-Horta - Petróleo e gás serão motor da nossa economia pelos próximos 20, 30, 40 anos. Não vamos abdicar dessa riqueza. Os países europeus que arruinaram o planeta desde a colonização e com a primeira Revolução Industrial são os que devem assumir a sua responsabilidade na destruição do planeta.
Por meio de petróleo e gás vamos poder diversificar e abandonar a energia não renovável, já que não podemos contar com a "generosidade" dos países ocidentais.
Folha - Pergunto também por interesse doméstico. Nas próximas décadas, as portas da economia global não podem se fechar para países que têm combustíveis fósseis na base de suas economias?
José Ramos-Horta - Há países, como Arábia Saudita, um dos maiores produtores mundiais de petróleo, que ainda dependem muito do petróleo e gás, e o mundo também depende dele. É melhor falarem com eles do que comigo. A contribuição do Timor para as emissões de carbono é mínima. Não ligo para os discursos ocidentais em relação a isso.
Folha - Falando em Asean, há o caso de Mianmar, uma ditadura. Como o senhor avalia a resposta que a comunidade global tem dado ao movimento de autocratização global?
José Ramos-Horta - A situação de Mianmar é uma catástrofe humanitária. O povo se sente traído pela comunidade internacional. Não tem havido punição suficiente. Se americanos e europeus aplicassem o mesmo nível de sanções financeiras e comerciais que aplicam contra a Rússia, haveria mudanças no comportamento do regime.
Folha - Um dos desafios de política externa que Lula tem é a relação com ditaduras da América Latina, como Cuba, Venezuela e Nicarágua, aliados dos governos Lula 1 e 2. Esboçaria algum conselho para a ele sobre isso?
José Ramos-Horta - Lula é injustamente acusado de ser comunista. Não há comparação possível entre Brasil e Venezuela ou Brasil e Cuba. O Brasil vive em plena democracia ?com as distorções e recuos que acontecem, como houve com Bolsonaro. É uma democracia dinâmica. Diria que o Brasil, dadas as relações que tem, pode fazer mais para que a situação de direitos humanos e de liberdade nesses países possa evoluir.
Mesmo na tragédia da Ucrânia, defendo que uma coligação de países como Brasil, Turquia, Índia, Indonésia e China, coordenados pela ONU, teria imparcialidade e proximidade suficiente para ajudar a mediar.
Folha - O senhor já disse que não se envolveria nas disputas entre EUA e China e que quer o Timor Leste fora das notícias nessa questão. O país pode se beneficiar dessa disputa pela região?
José Ramos-Horta - Quando há essas disputas, as grandes potências buscam alianças e nos abordam. Temos boas relações com EUA e China, mas elas são muito mais com Austrália, Indonésia, Singapura e EUA do que com a China. Compartilhamos valores da democracia e dos direitos humanos com esses países.
RAIO-X | JOSÉ RAMOS-HORTA, 73
Um dos líderes da independência do Timor Leste, foi laureado com o prêmio Nobel da Paz em 1996. Jurista, foi presidente de 2007 a 2012 e, antes, premiê e chanceler. Venceu as mais recentes eleições presidenciais, em abril de 2022.
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