SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Vamos direto ao ponto: a Guerra da Ucrânia é bastante complicada em termos políticos e históricos para ser explicada por cidadãos cuja única credencial é ser simpatizante de um dos lados. É preciso bem mais que isso, com empenho e profundidade acadêmica.
Estamos falando de "Ensaios sobre a Guerra Rússia Ucrânia 2022", com textos organizados por Neide Jallageas e Bruno Gomide para a editora Kinoruss. Doze historiadores e especialistas em cultura russa completam, com o livro, um trabalho de reflexão iniciado, em encontro na Universidade de São Paulo, antes mesmo que o conflito entrasse em seu terceiro mês.
Nenhum dos textos transporta legitimidade às ambições territoriais da Rússia. Mas a crítica inteligente satisfaz curiosidades e leva à satisfação intelectual.
Vejamos o do historiador Daniel Aarão Reis. Em determinado momento ele se refere à surpresa da Rússia e dos próprios ucranianos com a eficiência dos coletivos de resistência. Não são grupos armados clandestinos como a resistência francesa à ocupação alemã na Segunda Guerra, mas unidades altamente tecnológicas e geograficamente dispersas, com trocas de informações pelo celular sobre movimentações mecanizadas dos inimigos, com o uso de aplicativos criados pelos americanos.
O livro também se interroga sobre a justeza das razões que levaram o presidente russo, Vladimir Putin, a deflagrar o conflito. Ele foi amplamente apoiado pela opinião pública interna --ou o que isso signifique num Estado próximo a uma ditadura-- que temia a construção de bases militares da Otan em território da Ucrânia.
Mas textos de dois especialistas, Angelo Segrillo e Vicente Ferraro, argumentam que não é bem por aí. O acesso de Kiev à aliança militar ocidental teria um longo caminho pela frente, com a necessidade de profundas reformas políticas e militares. Não é coisa para amanhã. Mas a Otan inspira uma confusão deliberada. Ela assustou a Rússia ao avançar no Leste Europeu com a adesão de Hungria, República Tcheca e Polônia, três países da antiga esfera soviética, e em seguida de três ex-repúblicas da URSS, Letônia, Estônia e Lituânia.
Mesmo assim, a guerra acaba funcionando como tiro no pé, já que Finlândia e Suécia, antes neutras, entraram na fila para ingressar no bloco militar, por medo de uma futura agressão russa.
Outro motivo evocado por Moscou para desencadear a invasão foi a suposta incrustação de neonazistas na estrutura de poder da Ucrânia. Os russos têm a respeito duas referências. A primeira é o Batalhão Azov, originariamente milícia da direita radical depois incorporada à Guarda Nacional e, com isso, operacionalmente neutralizada.
A segunda é Stepan Bandera, que o então presidente Viktor Iuschenko declarou postumamente, em 2010, "herói da Ucrânia" -título que foi cassado tempos depois. Bandera foi nos anos 1940 um chefe de milícia que se bateu pela independência ao país e que, para se contrapor aos soviéticos, aliou-se ao Exército nazista.
Mas tudo isso é secundário, argumenta o livro, porque a coligação de ultradireita, na qual os neonazistas estão alojados, recebeu no último pleito legislativo só 2,15% dos votos, sem superar os 5% que permitiriam a eleição de um deputado.
Em suma, radicais existem na Ucrânia como em todo e qualquer país europeu, e uma guerra seria instrumento delirante para desalojá-los de um poder que não ocupam.
A terceira motivação evocada por Moscou para a guerra estava nos supostos maus-tratos que a Ucrânia reservaria a suas minorias de língua e cultura russas. Mas retenham a data de 2014. Foi quando Putin anexou a Crimeia e estimulou a independência das repúblicas russófonas de Donetsk e de Lugansk, que se tornaram regiões separatistas do Donbass ucraniano.
Essas três cisões territoriais provocaram uma guerra civil de baixa intensidade. Mas, estatisticamente, nos últimos oito anos morreram nessas regiões menos civis do que depois da invasão russa na Ucrânia. A guerra tem sido mais mortífera junto a uma população que, por afinidades étnicas, pretendia proteger.
Em tempo: os ucranianos de língua russa não aderiram aos invasores e boa parte deles emigrou para não participar do conflito.
Um último tópico entre dezenas de outros aqui relegados foi o levantado por Martin Baña, para quem o conflito fez ressurgir na Europa e nos EUA um preconceito contra a cultura russa. É como se a guerra fosse decidida por artistas e intelectuais hoje injustamente cancelados no Ocidente, como a soprano Anna Netrebko e o maestro Valeri Guérguiev, dois nomes magníficos da ópera e da música sinfônica universais.
Na cultura do cancelamento por parte de militantes desinformados, não é Putin, mas a cultura como um todo, que sai perdendo.
ENSAIOS SOBRE A GUERRA RÚSSIA UCRÂNIA 2022
Autor Bruno Gomide e Neide Jallageas (org.)
Editora Kinoruss 496 págs. R$ 99
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