SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um ano após os tanques de Vladimir Putin cruzarem a fronteira ucraniana, o impacto social da guerra ainda reverbera por toda a ex-União Soviética, para além da tragédia humana de mortos e desabrigados.
Filhos brigaram com pais, uma geração de exilados surgiu e, principalmente, indivíduos que se viam próximos da Rússia acordaram com bombas sobre suas cabeças. É uma guerra surda na Rússia, onde Putin estabeleceu um controle sobre a mídia ao longo de mais de 20 anos de poder que agora se tornou total --cerca de 20 veículos ainda independentes foram efetivamente fechados desde o início da guerra.
"Putin cometeu muitos erros, mas essa é uma guerra do Ocidente", diz a professora aposentada de inglês Vera Pimenova, 71, de Kabarovsk, repetindo algo que pesquisas já captavam antes mesmo do conflito.
Às portas da invasão, "três quartos da população estavam convencidos de que EUA e Ucrânia eram os culpados pela escalada", afirmou Denis Volkov, diretor de pesquisas do Centro Levada --principal instituto independente do gênero na Rússia, insuspeito por ser tachado de "agente estrangeiro" pelo Kremlin.
"A sociedade, embora tivesse medo do conflito, internamente estava pronta", sustenta. Pimenova é prova disso: "Não acho que houvesse outra opção", disse ela, parte dos 86% que, de acordo com sondagem do Levada, aprova a guerra e tem como principal fonte de informação a TV estatal.
Discorda dela Nastia, 35, sua filha que seguiu a mesma carreira de sua mãe na grande cidade siberiana de 630 mil habitantes. "Eu basicamente parei de falar com mamãe durante o ano passado todo. Agora, no Natal [ortodoxo, em janeiro], acabamos por fazer as pazes, mas não sei o quanto isso vai durar", afirmou.
A jovem não é radicalmente contrária a Putin, inserindo-se nos 82% que aprovam sua gestão, também segundo o Levada, mas não nos 45% que "definitivamente" apoiam o conflito ou nos 30% que "apoiam". "A operação militar não foi correta", disse, com o cuidado de usar o termo do Kremlin para a guerra.
Já seu irmão, Sasha, mora na Coreia do Sul e não faz planos de voltar à Rússia --ele é um crítico de Putin. Sua prima Masha, por sua vez, deixou a casa de Vera por somar-se aos 19% que não toleram o conflito e foi morar sozinha. "Ao fim, está tudo bagunçado", disse.
Concorda com ela Mikhail P., 42, consultor financeiro que pede para não ter o sobrenome divulgado. Ele fugiu para Riga, na Letônia, onde tem parentes, logo que as primeiras leis mais draconianas prometiam 15 anos de cadeia para quem propagasse o que o Kremlin considera fake news sobre a guerra.
Na prática, a regra é discricionária e foi usada mais para intimidar do que para de fato mandar pessoas à prisão --embora a repressão russa, já num crescendo desde a pandemia e a prisão do opositor Alexei Navalni em 2021, explodiu no ano passado, com 20 mil detenções contadas pelo monitor OVD-Info.
Para os panfletários radicais do putinismo, como o apresentador de TV Valdimir Soloviev, a saída de Mikhail e de um contingente estimado entre 500 mil e 1 milhão de russos equivaleu a uma "purificação do país" --sem a necessidade, digamos, de violência como nos tempos de Lênin ou Stálin.
O analista é um caso raro, já que a Letônia, apesar da grande população russófona, é um membro agressivo da Otan. A maior parte das pessoas que deixou a Rússia escolheu a Turquia, um membro bem mais flexível da aliança militar ocidental, a Geórgia ou a Armênia, pelas facilidades migratórias.
Ele saiu na primeira leva, diferentemente dos jovens que deixaram o país correndo quando Putin anunciou a convocação de 320 mil reservistas para o "moedor de carne" do Donbass, em setembro. A medida, que ainda repercute, assusta pessoas como Pimenova. "Não sei se poderão trazer meu filho da Coreia."
E a perplexidade segue, a começar pelo impacto na classe média: cartões de crédito internacionais não mais funcionam, vitrines ocidentais estão cobertas, a economia vive a incerteza dos efeitos das sanções.
Não só, contudo. "Abortando o passado, Putin cancelou o futuro. Para mim e para a minha família, essa é uma catástrofe à qual é impossível se adaptar. Fui tachado de agente estrangeiro, o que aumentou riscos pessoais e reforçou a impressão de que vivemos numa antiutopia Orwelliana", escreveu Andrei Kolesnikov.
Um dos mais conhecidos comentaristas políticos russos, ele trabalha remotamente para o Centro Carnegie (EUA), que teve de fechar as portas em Moscou depois de quase três décadas de trabalho.
Já na Ucrânia, por óbvio, é um conflito estridente. "Tenho amigos em Rostov-do-Don e primos em Moscou. Não sei se poderei vê-los e nem sei se quero, pois nos contatos que tivemos percebi que eles condenavam a guerra, mas entendiam as razões de Putin", afirmou Olha Khmelieva, 45, tradutora em Kharkiv.
A segunda maior cidade ucraniana logo foi alvo de bombardeios, embora nunca tenha caído para os russos. Khmelieva fugiu para um local vizinho, passando dois meses com amigos numa fazenda. Voltou e agora trabalha normalmente, apesar dos mísseis ocasionais e dos blecautes quase diários.
"Temos medo, mas a sirene antiaérea deixou de ser motivo para ficar paralisado. Ouvimos se há algum zunido de míssil ou obus e vemos para que lado foi", conta ela, que perdeu o contato com vários amigos.
Essa percepção de separação tem impacto universal, como contou às lágrimas à Folha de S.Paulo em maio a diretora Marina Er Gobarch, do aclamado "Klondike - A Guerra da Ucrânia". Ela foi para a Turquia com o marido, produtor do filme, mas deixou atores e membros da produção para trás --os homens, todos para o front.
Ela afirma acreditar na vitória final dos ucranianos, apesar do apoio que ela considera tardio do Ocidente. Na Rússia, de acordo com o Levada, apenas 1% tem a mesma opinião. Já 71% veem uma vitória russa, e 17%, um impasse sem triunfo para nenhum dos lados.
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