WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) - Os Estados Unidos viram como "lamentável" a decisão do Brasil de receber os navios de guerra iranianos nesta semana, mas reconhecem que foi "uma decisão soberana". É o que diz Ricardo Zúniga, o principal formuladores de políticas para o Brasil dentro da gestão de Joe Biden.

Vice-secretário assistente no Departamento de Estado e ex-cônsul em São Paulo, o diplomata afirma que o regime iraniano "não age apenas contra seu próprio povo", mas projeta sua influência além das fronteiras "em atividades contraproducentes para a paz e a segurança internacionais."

Em entrevista à Folha de S.Paulo, Zúniga diz que espera que o Brasil defenda a democracia e os direitos humanos nas ditaduras de Nicarágua e Venezuela. Ele reconhece que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode ter interesses divergentes dos americanos, mas afirma que os países têm relações complexas e que a ideia é fortalecer o laço com o Brasil.

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PERGUNTA - John Kerry disse no Brasil que deve-se colocar a mesma quantidade de dinheiro no combate a mudanças climáticas que se coloca na Guerra da Ucrânia. Mas o montante oferecido pelos EUA para o Fundo Amazônia foi apenas de US$ 50 milhões, menor do que o esperado e muito menor do que os EUA gastam na guerra. Os EUA vão ampliar esse valor?

RICARDO ZÚNIGA - Vamos ter que trabalhar com o nosso Congresso para garantir que o nível de apoio seja proporcional à importância que damos a isso. Consideramos chave que o Brasil continue liderando esforços multilaterais na Bacia Amazônica. Precisamos olhar para isso além do Brasil e achamos a abordagem regional muito sábia. A incerteza do que o Congresso vai aprovar é uma das razões pelas quais não fomos capazes de avançar além disso. Os US$ 50 milhões que foram colocados na mesa foram apenas o começo, mas acho que ambos os governos concordaram que era um bom começo.

P - O ministro Mauro Vieira vai receber o chanceler russo, Serguei Lavrov, em abril no Brasil. O governo russo indicou que pode estar aberto a conversas mediadas pela China e possivelmente pelo Brasil. O presidente Lula tem falado em um clube da paz. Como você vê isso?

RZ - Há um aspecto diplomático importante para alcançar o fim deste conflito, que os EUA reconhecem, apoiam e tem defendido. O secretário [de Estado americano, Antony] Blinken conversou com o ministro Lavrov. Mas não devemos perder de vista que há uma solução muito clara para a guerra, que é a Rússia parar a agressão e a invasão. A Ucrânia tem muito pouco espaço de manobra. Se parar de lutar, perde território. A maioria da comunidade internacional, incluindo Brasil e EUA, concorda que houve uma violação da Carta da ONU.

É importante que todos trabalhem para convencer a Rússia a pôr fim à sua agressão. Temos muito cuidado para não fazer uma falsa equivalência. Não são partes iguais do conflito. Um lado é o agressor, a Rússia, e outro é a vítima, a Ucrânia. A diplomacia é uma das componentes, mas tem que ser abordada da perspectiva de que a Ucrânia é a parte prejudicada.

P - Como viu o atracamento dos navios iranianos no Brasil?

RZ - O Irã está claramente tentando demonstrar sua capacidade de levar força militar para qualquer lugar do mundo, e esse era o propósito da visita, demonstrar que pode operar em outras partes do mundo. Os navios foram alvo de sanções dos EUA por facilitar atividades ilícitas no passado, e deixamos claro para todos os países das Américas nossas preocupações. Receber os navios quando o Irã não apenas está agindo contra seu próprio povo, mas também tentando se envolver muito além de suas fronteiras em atividades contraproducentes para a paz e a segurança internacionais é preocupante.

Reconhecemos que é uma decisão soberana do Brasil. Mas vale notar que nenhum outro país hospedou esses navios. E há um amplo consenso de que os esforços do Irã em projetar poder no Hemisfério Ocidental, nas Américas, não são propícios para o bem-estar das Américas, devido a atos muito claros e documentados. A Argentina, vizinha do Brasil, é um exemplo muito bom dos tipos de atividades que o Irã realizou no passado [ataque contra judeus no país em 1992 e 1994 deixaram 114 mortos]. É o mesmo governo no poder até hoje. Portanto, foi lamentável, mas, novamente, uma decisão soberana do Brasil.

P - Lula autorizou o atracamento dos navios e vai em breve à China. Quando a lua de mel entre os governos Lula e Biden vai acabar?

RZ - Os dois países precisam um do outro e de uma política externa sofisticada. O Brasil é um ator global, vai ter um amplo conjunto de relações. Entendemos que o Brasil tem laços econômicos e comerciais profundos com outros países, incluindo aqueles com os quais os EUA têm relação adversária. Os EUA também têm relações complexas. Na maior parte, nossos interesses convergem nas grandes questões que estamos lidando no mundo: mudanças climáticas, fome, paz internacional, oportunidades, migração, o desafio de promover uma classe média em nossas sociedades. Esta é uma relação que resistiu a muitos altos e baixos, mas o fato é que ela continua sendo uma das relações mais importantes que temos. Vamos provavelmente fortalecer nossa relação, não enfraquecê-la.

P - Biden participou de uma reunião no México em janeiro e mencionou a importância de investir na cadeia de suprimentos de semicondutores na região. A secretária de Comércio dos EUA, Gina Raimondo, levantou a possibilidade de expandir a cadeia de suprimentos de semicondutores no Brasil e conversou com o vice-presidente Geraldo Alckmin. Que papel o Brasil poderia desempenhar nisso?

RZ - O Brasil possui uma base industrial altamente desenvolvida. Os EUA são o maior cliente do Brasil em bens manufaturados e de valor agregado não apenas por causa da Embraer, mas também por outros produtos. Possui aspectos estratégicos em termos de recursos minerais e naturais, mas também possui capacidade técnica e escala para explorar isso. Mas ainda estamos começando a tentar descobrir como isso pode ser aplicado.

P - Os EUA receberam dezenas de presos políticos expulsos da Nicarágua pelo regime Daniel Ortega. Gabriel Boric, do Chile, voluntariou-se para receber alguns dissidentes. O Brasil pode ajudar?

RZ - Recebemos de braços abertos as 222 pessoas que chegaram aos EUA em 9 de fevereiro. Mas é crucial que não percamos de vista os abusos contra a sociedade da Nicarágua e contra essas pessoas que foram autorizadas a sair, mas tiveram sua nacionalidade retirada. É uma arma de terror contra a população. Deveríamos trabalhar juntos para acabar com essas práticas terríveis. O Brasil tem papel importante a desempenhar como defensor da democracia e dos direitos humanos. Acolhemos as pessoas que foram libertadas. Mas as ações subsequentes, incluindo a prisão por 26 anos de um bispo católico que se recusou a sair do país, passam a mensagem de que a medida foi para aterrorizar pessoas, não aliviar sofrimento.

P - O governo Lula está reabrindo a embaixada em Caracas e retirou restrições a autoridades do regime de Nicolás Maduro. Como veem isso?

RZ - O Brasil deve defender, assim como os demais países das Américas, uma resolução democrática e negociada da crise política em Caracas. Precisamos trabalhar juntos, todos nós que somos afetados pelos efeitos dessa crise política e econômica para garantir uma eleição democrática em 2024. Há um interesse de todos, mas particularmente dos vizinhos da Venezuela. Os EUA vão trabalhar com Brasil, Colômbia, outros países nas Américas, na Europa e em outros lugares para promover uma solução negociada. As conversas no México devem ser retomadas e acreditamos que a melhor maneira de resolver isso é estabelecendo condições para uma eleição livre e justa.

P - O chanceler Mauro Vieira quer que os EUA reavaliem os voos com imigrantes deportados para o Brasil. Os EUA estão abertos a isso?

RZ - O aumento no número de voos ocorreu devido ao aumento dramático no número de brasileiros chegando à fronteira. É preciso garantir que as pessoas que estão em situação irregular passem pela Justiça rapidamente para que, se forem enviadas de volta ao Brasil, isso seja feito da maneira mais rápida, eficiente e segura possível. Este é o nosso objetivo.

Mas também é nosso objetivo trabalhar com o Brasil para lidar com esse nível histórico de migração irregular em toda a região. São mais de 10 milhões de pessoas, grande parte relacionada à Venezuela, por isso precisamos resolver essas questões lá. Mas acredito que encontramos muito espaço para uma boa colaboração com o Brasil em termos de resposta regional.

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RAIO-X

RICARDO ZÚNIGA, 52

Vice-secretário assistente para Hemisfério Ocidental no Departamento de Estado dos EUA, é um dos principais responsáveis pela formulação de políticas para o Brasil no governo americano. Foi cônsul em São Paulo de 2015 a 2018. Antes, foi diretor sênior de Hemisfério Ocidental no Conselho de Segurança Nacional no governo Barack Obama, quando foi um dos responsáveis pela aproximação dos EUA com Cuba em 2014. Nasceu em Honduras e estudou relações internacionais e estudos latino-americanos na Universidade da Virgínia.

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Marcelo Camargo/Agência Brasil - Os ministros da Ciência e Tecnologia, Luciana Santos, da Casa Civil, Rui Costa, da Educação, Camilo Santana, da Secretaria-Geral, Márcio Macêdo, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante reunião com reitores das universidades federais e institutos federais de ensino, no Palácio do Planalto.

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