TOULOUSE, FRANÇA (FOLHAPRESS) - Linha de frente na turbulenta condução da reforma da Previdência de Emmanuel Macron e ameaçada de deposição por uma votação que não obteve maioria por apenas nove votos, a primeira-ministra da França, Elisabeth Borne, 61, precisa se manter no cargo por mais dois meses para superar a marca da primeira e única mulher a ocupar o posto de chefe do governo antes dela.

Édith Cresson, nomeada primeira-ministra em 1991 pelo então presidente François Mitterrand (1916-1996), foi demitida apenas dez meses depois em meio a polêmicas envolvendo declarações homofóbicas e xenófobas e brigas com a mídia que lhe renderam uma incontornável crise de popularidade.

Passaram-se 31 anos até que outra mulher assumisse esse mesmo lugar de prestígio na 5ª República da França. Foi em 16 de maio de 2022, no início de seu segundo mandato, que Macron nomeou Borne.

Consequência de seu perfil discreto, disciplinado e exigente, pouco se sabia sobre a vida privada de Borne quando ela subiu à tribuna da Assembleia para seu discurso de posse.

"Se estou aqui, devo isso à República", disse. "Foi a República que me estendeu a mão, fazendo de mim uma pupila da nação quando eu era a criança cujo pai nunca voltou totalmente dos campos [de concentração nazistas]", revelou, para surpresa geral.

Àquela altura, Borne era uma figura conhecida da vida política. Já havia sido Ministra dos Transportes, da Transição Ecológica e do Trabalho durante o primeiro mandato de Macron. Antes, em 2014, foi chefe de gabinete da socialista Ségolène Royale quando ela estava à frente da pasta da Ecologia durante a presidência de François Hollande.

E, em 2015, foi presidente da RAPT, a empresa estatal que administra o transporte público na Grande Paris, aproveitando-se da expertise adquirida nos anos 2000, quando foi diretora da SNCF, a gigante pública que administra a rede ferroviária da França. Borne tem ainda passagens como conselheira do Ministério da Educação e diretora de urbanismo da prefeitura de Paris, cidade onde nasceu em 1961.

Durante seu percurso no serviço público, manteve-se longe dos holofotes, sob os quais foi lançada ao assumir o segundo cargo mais poderoso do país.

Foi quando descobriu-se que sua família paterna, de judeus de origem russa, fora dizimada nos campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Seu avô e dois dos três tios morreram em Auschwitz. Seu pai, Joseph, sobreviveu, mas nunca se recuperou da terrível vivência -nunca "voltou totalmente".

Numa rara entrevista em que tratou da vida privada, concedida ao Nouvel Observateur em dezembro, Borne contou que cresceu num ambiente pesado, em que o Natal não era comemorado porque seu pai havia sido preso pelos nazistas num dia 25 de dezembro, em Grenoble, no leste da França. E que não se podia fazer barulho na casa durante o dia porque era quando o pai, sonâmbulo, conseguia algum descanso.

Quando ela tinha 11 anos, o pai cometeu suicídio. Sem condições financeiras de criar as duas filhas, sua mãe, Marie-Marguerite, entregou a tutela das filhas ao Estado. E Borne se tornou "pupila da nação", estatuto reservado aos filhos menores de 21 anos de pessoas mortas ou feridas em consequência de guerras ou atentados terroristas.

Para escapar da dor da perda, a hoje primeira-ministra buscou refúgio na matemática. "Mergulhei nela como uma terapia."

Borne se tornou uma aluna obstinada, que não aceitava não tirar a nova máxima. Aos 16 anos, foi morar com o então namorado, Olivier, com quem depois se casou e teve o único filho, Nathan. Com ele, descobriu "pela primeira vez uma família francesa normal e tradicional".

Estudou para os exames competitivos do ensino superior da França e foi aprovada em todos. Escolheu a Escola Politécnica porque oferecia remuneração a alunos. Eram 22 mulheres entre 300 estudantes, e Borne aprendeu como transitar em um mundo de homens.

Formou-se engenheira com louvor, diploma que considera "um passe livre para um mundo machista". Logo entrou para o serviço público, onde seu compromisso e capacidade de trabalho abriram portas.

Na carreira política, ficou conhecida pelo alto grau de exigência, o humor cáustico, o cigarro inseparável --hoje, eletrônico-- e a austeridade. Presidente da RAPT, ela ia para o escritório de metrô. Ministra do Trabalho, voltava para casa a pé. E, hoje, mesmo tendo à disposição o belo Hotel Matignon como residência oficial, continua a viver no apartamento de dois dormitórios perto do cemitério de Montparnasse.

Mas foi seu perfil técnico, a postura combativa e a proximidade com a esquerda francesa que fizeram de Borne a escolhida de Macron para o posto de primeira-ministra. A esperança era de que ela desse celeridade e angariasse apoio fora dos partidos da base aliada para uma ambiciosa agenda reformista que tinha tudo para incendiar o país.

Cumprir essa tarefa poderia torná-la uma espécie de dama de ferro da França, ainda que as reformas francesas não sejam tão liberalizantes como as de Margareth Thatcher, a primeira-ministra britânica que recebeu o apelido nos anos 1980. Mas a resposta das ruas na França não deixa dúvidas: o plano de Macron não deu certo.

As montanhas de lixo que se acumulam nas ruas de Paris por conta da greve dos garis contra a reforma da Previdência foram convertidas em fogueiras durante os protestos que eclodiram na noite desta segunda (20) após duas moções de censura terem sido rejeitadas pela Assembleia Nacional por margem estreita.

As moções tinham como objetivo derrubar Borne do cargo e reverter a aprovação automática da reforma, obtida quando a primeira-ministra evocou o artigo 49.3, dispositivo constitucional que permite ao governo aprovar projetos de lei sem votação parlamentar.

Há quem diga que a firmeza e serenidade que Borne manteve durante os embates parlamentares mais difíceis da reforma foram talhadas por sua história de vida sofrida e renitente.

Especula-se que Macron possa oferecer Borne, isolada publicamente, ao sacrifício para acalmar os ânimos dos franceses que radicalizaram os protestos contra a reforma nas principais cidades do país. Mas ainda faltam dois meses para Borne superar a marca da primeira e única mulher a ocupar o posto de chefe do governo antes dela.


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