SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O governo de Valdimir Putin previu nesta quarta (29) que o conflito entre a Rússia e o que chama de países hostis, a coalizão ocidental liderada pelos Estados Unidos que apoia a Ucrânia contra a invasão promovida pelo vizinho no ano passado, irá durar muito tempo.

Se isso era insinuado em falas de Putin e de outras autoridades, foi vocalizado com todas as letras pelo porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, em sua conversa diária com repórteres russos.

Ele havia sido questionado acerca de uma reportagem do jornal britânico The Guardian, segundo a qual ele afirmou em um jantar de fim de ano com membros da elite russa que "as coisas ficarão muito mais difíceis" e que a guerra na Ucrânia iria "durar tempo longo, muito longo".

"Se você [o repórter que o questionou] diz guerra em um sentido amplo, como no confronto com Estados hostis, essa guerra híbrida que foi lançada contra nosso país, então estará aqui por um longo tempo", afirmou.

Desde que cruzou as fronteiras ucranianas em 24 de fevereiro de 2022, Putin foi vago em termos de objetivos da guerra, que nem é chamada assim por ele -o eufemismo operação militar especial é a palavra oficial para a ação.

Isso serve a dois propósitos. Primeiro, dribla cobranças diretas: o fracasso em tomar Kiev de assalto nas primeiras semanas da guerra, que foi redirecionada pelos russos para as áreas onde obteve sucesso no sul e no leste, nunca foi admitido como tal porque, afinal de contas, nunca foi anunciado como meta.

Ao longo do conflito, autoridades soltaram aqui e ali dicas sobre qual seria o objetivo. O chanceler Serguei Lavrov falou em derrubar o governo de Volodimir Zelenski, um general citou a conquista do sul ucraniano até Moldova, o próprio Peskov citou a manutenção das quatro províncias anexadas ilegalmente por Putin como o mínimo desejável.

Mas ninguém anunciou de fato o que deseja Putin. Observadores do longo reinado do presidente, iniciado na cadeira de premiê em 1999, sugerem que talvez nem ele saiba: o líder sempre foi visto como um jogador tático, trabalhando com oportunidades, e não como um estrategista de longo prazo.

Contra essa visão há o segundo aspecto da falta de objetivos: eles podem ser muito amplos, como sugere Peskov, ainda que ele diga que a culpa é dos outros. Ao longo de 2022, com o apoio ocidental à resistência ucraniana surtindo efeito, Putin mudou sua retórica. Parou de falar em guerra contra Kiev e passou a pintar o conflito como uma luta existencial da Rússia contra o Ocidente.

Tal visão, bombardeada na propaganda da TV estatal, ressoa na população. Segundo o instituto de pesquisa independente Levada, aos menos 36% dos russos acreditavam em novembro que a culpa do conflito é do Ocidente.

"O que nós precisamos é sermos duros, leais a nós mesmos, focados e unidos em torno do presidente", disse Peskov. Tem dado certo: o apoio medido pelo Levada a Putin em fevereiro estava em 83%, perto do máximo histórico de 89%, registrado após a anexação da Crimeia em 2014.

A guerra em si é apoiada por 77%, segundo o insuspeito instituto, que é considerado um "agente estrangeiro" por contar com financiamento externo -logo, malvisto pelo Kremlin e sujeito a maior rigidez das autoridades, como o Fisco.

A reportagem questionou uma pessoa próxima do Kremlin acerca da fala de Peskov. Ela confirmou o teor da reportagem do Guardian e disse que o sentimento prevalente na elite, ainda que de desânimo, é o de fatalismo: terão de ir com Putin até o final.

Isso reflete a estrutura de poder montada pelo russo, sempre amparado por alta popularidade e deixando a casta abaixo de si se digladiar por espaço e poder. Isso evitou o surgimento de alguma liderança alternativa na elite, para não falar no esmagamento na prática da oposição não consentida.

Adicionando drama ao relato, essa pessoa acredita que o tal fim pode envolver uma guerra de fato contra a Otan (aliança militar do Ocidente), e que armas nucleares não estão fora de cogitação. Citou a nuclearização de Belarus, anunciada por Putin e criticada pelo Ocidente, como uma prova real do intento, e não só uma ameaça.

Seja verdade ou não, o fato é que ao longo de 2022 Putin colocou a Rússia em modo de combate, determinando prioridades militares à indústria e convocando 300 mil reservistas. Cimentou sua aliança com Pequim e está sobrevivendo às sanções ocidentais graças aos chineses, indianos e outros países que ampliaram o comércio com os russos -Brasil, em menor escala, incluso.

Em campo, a matança continua em alta voltagem em torno de Bakhmut, a contestada ruína de cidade de Donetsk que tornou-se símbolo da guerra. Nesta quarta, o líder do grupo mercenário russo Wagner, Ievguêni Prigojin, disse que ainda tem a mão mais alta no jogo, mas admitiu perdas.

"A batalha hoje praticamente destruiu o Exército ucraniano e, infelizmente, também afetou duramente o Wagner", disse. Kiev tem insistido no atrito na região ao leste do país enquanto crescem os rumores de que irá lançar uma contraofensiva nos próximos dias, como já disseram oficiais do país e da Rússia.

O caminho mais óbvio seria um ataque ao sul, na região de Zaporíjia, onde controla toda a porção norte da área anexada, rumo à Crimeia. Mesmo com a chegada dos primeiros tanques ocidentais ao país, contudo, há dúvidas sobre a real capacidade ucraniana de tal empreitada -assim como a de Moscou de fazer algo semelhante em outra direção.

Nesta quarta, o diretor da Agência Internacional de Energia Atômica, Rafael Grossi, visitou a usina nuclear de Zaporíjia, a maior da Europa e sob controle russo. Ele disse que a situação segue precária em termos de segurança na unidade.


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