SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Os arsenais nucleares prontos para uso do mundo cresceram em 2022, puxados por um aumento significativo em termos proporcionais do número de ogivas atômicas da China.
É o que revela a nova contagem anual feita pela Federação dos Cientistas Americanos (FAS, na sigla inglesa), o padrão-ouro desse tipo de avaliação no mundo. Obviamente, os pesquisadores trabalham com estimativas, dado que os países tratam esses números como segredos.
Os Estados Unidos são considerados os mais transparentes com essas informações e Israel, que nem admite as estimadas 90 ogivas que tem, o país mais opaco entre as nove potências nucleares.
Os chineses tiveram um aumento de 17% em seu arsenal, que chegou a 410 ogivas segundo a FAS. Ainda é algo modesto em relação ao colossais estoques russos e americanos, herança da primeira edição da Guerra Fria entre União Soviética e EUA, vencida por Washington em 1991 com a dissolução do império comunista.
Mas mostra que a segunda versão do embate, que tem características bem diferentes e opões chineses a americanos frontalmente desde 2017, começa a influir na postura nuclear de Pequim. Reflete, também, a realidade de um mundo em que a Rússia trava uma sangrenta guerra no coração da Europa, contra a Ucrânia.
A doutrina nuclear chinesa prevê que o país só terá um estoque mínimo de bombas para dissuadir outras potências de empregarem armas atômicas contra si. Segundo relatório do Pentágono do ano passado, isso está em mutação e a China pretende se igualar a russos e americanos até 2035.
Hoje, a dupla da primeira Guerra Fria soma 89% das 12.512 ogivas existentes no mundo ?contando aqui aquelas que foram aposentadas e estão esperando para serem desmontadas, ainda que possam em tese ser reativadas.
Em termos de estoque militar ativo, que inclui aquelas operacionais, prontas para uso, e as que ficam estocadas em pontos distantes de seus meios de lançamento, Rússia e EUA somam 86% do arsenal mundial. Vladimir Putin tem mais ogivas à mão do que Joe Biden: 4.489 ante 3.708 do tipo ativo, fora os estoques aposentados.
Ambos os países são signatários do único tratado de controle de armas estratégicas, aquelas que visam destruir grandes áreas para tentar mudar o rumo de uma guerra, o que na prática resultaria no apocalipse, o Novo Start.
Pelo acordo, os países deveriam ter um teto de 1.550 ogivas estratégicas operacionais. Na prática, já tinham mais: 1.674 russas e 1.670 americanas, mas agora tudo isso está em suspenso porque a Rússia pausou sua participação no tratado devido ao apoio americano ao esforço de guerra de Kiev.
Putin deu tintas dramáticas ao anúncio, feito em discurso no dia 21 de fevereiro. "O Ocidente soltou o gênio da garrafa. Estamos falando da existência do nosso país. Eles não escondem seu objetivo: infligir uma derrota estratégica à Rússia, ou seja, acabar conosco de uma vez por todas", afirmou.
Pela doutrina nuclear russa, "risco existencial" mesmo sem o emprego de armas nucleares pode justificar o uso da bomba atômica. O termo foi reafirmado na nova diretriz de política externa do país, publicada na semana passada.
Moscou, contudo, se comprometeu a manter os níveis do seu arsenal estáveis até o fim da vigência do Novo Start, em 2026 ?já inspeções mútuas e trocas de informações vitais para assegurar que nenhum lado vai começar uma guerra estão suspensas.
Adicionando tensão ao delicado equilíbrio, Putin anunciou que irá estacionar mísseis com ogivas nucleares táticas, aquelas usadas contra alvos militares mais específicos e de menor potência, junto às fronteiras da Otan (aliança militar do Ocidente) com sua aliada Belarus.
Entre as potências nucleares, apenas os EUA tiveram uma discreta redução nos estoques estratégicos ativos: 4 ogivas a menos de pronto uso e 26, estocadas. França (290 ao todo) e Israel permaneceram estáveis, enquanto Rússia teve um aumento pequeno (12 ogivas), assim como Paquistão (5) e Índia (4).
O caso do Reino Unido, a FAS passou a considerar as 45 ogivas aposentadas até 2022 como reincorporadas, elevando o número de armas ativas a 225. Não é, contudo, comparável à construção de 60 bombas pelos chineses.
Considerando a desativação de armas aposentadas, que seguiu seu curso nos EUA e na Rússia, o arsenal global total caiu levemente, de 12.705 para 12.512 ogivas. O auge do estoque foi perto do fim da Guerra Fria, em 1986, quando o mundo chegou a 70.374 bombas, mas a melhoria do cenário é ilusória.
Primeiro, porque só o emprego de parte das armas operacionais hoje já garantiria a inviabilização da civilização como a conhecemos, pelo fogo nuclear, a radioatividade e o inverno global subsequente, provocado pela suspensão de milhões de toneladas de solo.
Segundo, porque o equilíbrio do terror da Guerra Fria, a chamada doutrina MAD (destruição mútua assegurada, que vira o acrônimo "louco" em inglês), mantinha o jogo em relativa estabilidade ?o mundo de fato só próximo de um desastre em 1962, na crise dos mísseis de Cuba, e em 1983, quando a paranoia soviética confundiu um exercício da Otan com um ataque real.
Hoje, a guerra na Ucrânia e as constantes ameaças nucleares de lado a lado, seja pelo uso da carta atômica por Putin, seja pelos testes de mísseis norte-coreanos ou os voos de bombardeiros B-52 americanos na Europa e no Pacífico, mostram uma volatilidade tão grande que o secretário-geral da ONU, o português António Guterres, falou que o conflito está "por um erro de cálculo".
Otimistas veem o estoque de armas semelhante ao nível dos anos 1950 como um bom sinal, mas isso ignora o fato de que hoje a forma de emprego das armas é muito mais sofisticada e precisa, além de estar em constante evolução.
Isso se demonstra com a entrada em serviço de mísseis hipersônicos ou o desenvolvimento acelerado do novo bombardeiro furtivo ao radar americano, o B-21. Para não falar na possibilidade de novas adições ao clube nuclear, como o Irã ou a Coreia do Sul e Japão, temerosos pelas ameaças de Pyongyang.
As cinco principais potências nucleares, as integrantes do Conselho de Segurança da ONU Rússia, EUA, China, França e Reino Unido, se comprometeram em janeiro de 2022 a nunca travar uma guerra nuclear.
Pouco mais de um mês depois, Putin invadia a Ucrânia e subvertia a ordem estabelecida na Europa pelos vencedores da Guerra Fria. Apesar de ele sempre dizer que a Rússia não fará nenhuma loucura, para emprestar a frase do presidente russo, "o gênio saiu da garrafa".
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