CIUDAD JUÁREZ, MÉXICO (FOLHAPRESS) - A cena é a de um deserto de filme. O vento forte levanta a poeira, o termômetro marca mais de 30°C e o serviço meteorológico dispara alerta de tempo extremo, com a umidade do ar a 8%. Mesmo assim, no acostamento da estrada que sai do centro de Ciudad Juárez, na fronteira entre México e Estados Unidos, imigrantes caminham horas para encontrar o melhor lugar para atravessar para o lado americano.

"Já andei o continente inteiro, não faz mal andar uma hora agora", disse à reportagem um venezuelano que preferiu não se identificar.

A partir desta sexta-feira (12), perde a validade o chamado Título 42, norma que entrou em vigor durante a pandemia e que permitia expulsar imigrantes que chegavam aos EUA de maneira irregular antes mesmo que fizessem um pedido de asilo. Com o fim da medida, as cidades de fronteira se preparam para um aumento ainda mais expressivo no número de pessoas cruzando sem documentos --em 2022, 2,6 milhões de imigrantes foram flagrados na fronteira.

Hoje, autoridades já falam em ao menos 10 mil pessoas chegando todos os dias. Nem todos, porém, estão pensando no fim do Título 42; muitos relatam que só querem entrar nos EUA o mais rápido possível. A maioria é de imigrantes pobres fugindo da crise generalizada que tomou a América Latina após a pandemia, acentuada em regiões que já viviam emergências humanitárias, como Venezuela e Haiti.

Em uma viagem de carro de menos de uma hora a partir de Ciudad Juárez, a reportagem viu grupos de dezenas de pessoas esperando a melhor hora de cruzar o Rio Grande, que divide os dois países, atravessar as cercas de arame farpado colocadas pela guarda do Texas e pular um portão de quase 10 metros de altura.

A maioria chega a andar mais de 20 quilômetros a partir do centro da cidade mexicana, mas os que chegam com algum dinheiro vão de Uber até um lugar onde se possa cruzar a fronteira.

O motorista Victor de Lara, 58, diz que faz esse trajeto ao menos uma vez por semana. A última foi na segunda-feira (8), quando três rapazes na casa dos 20 anos que ele acredita serem venezuelanos --não se faz muitas perguntas nessa situação-- contrataram uma corrida que custou 200 pesos mexicanos (R$ 56), pagos em dinheiro. "Estavam muito magros e cansados. Deixei em uma entrada onde havia mais gente esperando. O resto a gente não fica sabendo."

Do outro lado do rio, agentes da patrulha de fronteiras e da guarda do Texas cruzam em caminhonetes e param de frente a grupos de imigrantes para desencorajar a travessia.

Ciudad Juárez figura com frequência no alto da lista de cidades mais perigosas do mundo, em meio à violência generalizada com a guerra entre cartéis de drogas. O clima árido e o sol inclemente fazem lembrar o sertão nordestino, e as construções improvisadas e problemas de asfalto assim que se deixa o centro a assemelham às periferias de qualquer grande cidade brasileira.

No centro de Juárez, em frente à prefeitura, há uma lembrança incômoda da crise migratória: o prédio onde funcionava o centro de detenção de imigrantes que pegou fogo no fim de março e deixou 40 mortos. O edifício continua no local, com as paredes escurecidas pelo fogo, que foi iniciado pelos próprios detidos em protesto contra as condições precárias do lugar. Na quarta (10), o governo mexicano afirmou que vai fechar 33 centros do tipo em todo o país.

Em frente ao prédio incendiado, na calçada da prefeitura, há dezenas de barracas de pessoas que esperam para entrar nos EUA, como a do venezuelano Jean Carlos, 31, que havia acabado de ser expulso do país.

Ele chegou à fronteira pelo trem apelidado "la bestia" (a fera), veículo cargueiro que cruza o México e sobre o qual centenas de imigrantes pegam uma carona improvisada que com frequência deixa mortos e feridos. Ao chegar, com a mulher e a enteada de 12 anos, entregou-se às autoridades americanas pedindo asilo. Elas entraram para agendar uma audiência com um juiz. Ele, que não é casado no papel nem tem a guarda da menina, foi mandado de volta ao México.

"Não gosto nem de pensar nelas sozinhas lá que começo a chorar. Não quero cruzar ilegalmente porque, se me pegam, é prisão e fico cinco anos sem poder tentar entrar de novo. Ainda não sei o que fazer."

Os imigrantes sobrevivem ali com doações, como a do pastor brasileiro Eliel de Castro, 42, que mora em Ciudad Juárez há oito meses e trabalha com assistência a dependentes químicos. "É uma situação desumana. Muitos chegam até bem, mas ficam dormindo nas ruas e depois se viciam em drogas", afirma.

A assistência de igrejas é uma das formas mais comuns de receber os imigrantes na cidade. No abrigo coordenado pelo pastor mexicano Juan Fierro há capacidade para até 150 pessoas, que às vezes ficam anos no local --uma bandeira do Brasil pintada na parede mostra que já passaram brasileiros por lá.

No local vivem as primas Jennifer Garcia, 26, e Estefania Sanchez, 30, com suas respectivas famílias, incluindo três crianças pequenas. Elas fugiram do estado de Hidalgo, mais ao sul do México, após receberem ameaças --elas preferem não detalhar o episódio, tamanho o trauma causado na família, e só falam que "tiveram um problema".

Cruzar ilegalmente não foi uma opção. "Não vamos nos arriscar com nossas crianças, é neles que pensamos quando viemos aqui". Elas baixaram um aplicativo criado pelo governo americano para agendar uma audiência e pedir o asilo antes de cruzarem, mas, como muitos dos que aguardam na cidade, ainda não conseguiram nem marcar uma data, em meio a erros constantes no cadastro do programa.

O fluxo entre Ciudad Juárez e El Paso, no Texas, é constante e é comum trabalhar no lado americano, recebendo em dólares, e viver no lado mexicano. As duas cidades se dividem por seis pontes, três das quais se pode cruzar a pé a uma simbólica taxa de US$ 0,50. Dos EUA ao México, não há praticamente nenhuma barreira e não é preciso nem sequer apresentar passaporte ou documento de identidade. Um policial mexicano olhou por cima a mochila da reportagem e apenas perguntou se trazia alguma arma.

Já no sentido oposto, do México aos EUA, é preciso passar pela imigração em um saguão parecido com o de um aeroporto --a diferença é que há pessoas de bicicleta e até de patinete. Quem vive na fronteira pode pedir um documento que agiliza a passagem, mas, quem não tem acesso a ele, precisa pegar a fila normal, que pode demorar horas.

Carregar um passaporte brasileiro não ajuda --já que o Brasil também é um país comum de origem dos imigrantes sem documentos. A reportagem foi extensivamente questionada primeiro por um policial e depois por um agente de imigração, mesmo com visto e credenciais de imprensa, enquanto outros jornalistas estrangeiros passavam sem grandes problemas pelas outras cabines.

O receio de quem vive a vida entre os dois lados da ponte é que a situação se agrave a um ponto que o governo americano feche esses acessos, disse um estudante, que também preferiu não se identificar. Ele frequenta a unidade local da Universidade do Texas, com 80% dos alunos mexicanos-americanos. "Não posso perder as provas do fim do semestre se fecharem a fronteira. Espero que a situação melhore logo."


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