SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Chamado em textos da imprensa internacional de "Trump dos trópicos", Jair Bolsonaro (PL) se igualou ao americano em mais uma característica ao deixar o cargo: é alvo de uma série de investigações por atos praticados durante o mandato presidencial.

Diferenças na legislação e no sistema político dos dois países, no entanto, colocam-nos em caminhos diferentes, ao menos por enquanto.

Enquanto Bolsonaro foi declarado inelegível na sexta-feira (30), Donald Trump poderá tentar voltar à Casa Branca mesmo se for preso por crimes pelos quais foi indiciado até o momento.

O julgamento do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) também colocou em evidência características particulares do sistema de Justiça brasileiro, com muitas atribuições concentradas em uma corte superior especializada, e que segue uma legislação que endureceu ao longo dos anos.

Foram os votos de 5 dos 7 ministros do TSE que determinaram que Bolsonaro fique fora das disputas por oito anos. Eles entenderam que o então mandatário praticou abuso de poder ao atacar o sistema eleitoral brasileiro com desinformação em reunião no Palácio da Alvorada com embaixadores transmitida por emissora estatal.

A punição a Bolsonaro foi possível devido à Lei da Ficha Limpa, sancionada em 2010, que possibilitou que a inelegibilidade fosse aplicada também a candidatos derrotados no pleito, caso o delito fosse considerado grave.

A legislação ainda aumentou o tempo da pena de 3 para 8 anos sem concorrer.

Nos Estados Unidos, a situação é diferente tanto por causa da Constituição como da autonomia dos estados.

Em alguns deles, condenações por crimes graves podem tirar do cidadão o direito a voto pelo resto da vida, o que implica inelegibilidade para cargos locais.

No caso da eleição presidencial, porém, é diferente. Entre os poucos critérios estabelecidos pela Constituição americana para alguém concorrer ao cargo máximo do país, não está a ausência de condenações criminais.

"Cria-se aí uma situação paradoxal, e é possível que a Suprema Corte venha a se manifestar sobre isso", diz a advogada Olivia Raposo da Silva Telles, autora de "Direito Eleitoral Comparado - Brasil, Estados Unidos e França" (Saraiva, 2009).

Uma outra característica torna a situação ainda mais peculiar. Trump é registrado como eleitor na Flórida, o que o impediria de votar em si mesmo caso fosse condenado. Mas não o impediria de ser votado.

Por enquanto, o ex-presidente americano foi indiciado em dois processos. Um deles, em corte federal, por supostamente ter mantido a guarda de documentos confidenciais do governo após deixar a Casa Branca.

E outro em Nova York, com acusações de fraude envolvendo a compra do silêncio de uma atriz pornô antes das eleições de 2016.

A situação é nova. O caso do socialista Eugene Debs, que concorreu à Presidência em 1920 mesmo estando preso, é sempre lembrado. Trump, se tiver o mesmo destino, será porém o primeiro político com chances reais de vitória a enfrentar situação.

O ineditismo faz aparecer na imprensa do país até a especulação se Trump, caso condenado e eleito, poderia dar o perdão presidencial a si mesmo.

Situação diferente pode ocorrer caso o presidente seja responsabilizado pelo ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Isso porque a 14ª Emenda proíbe quem "tiver se envolvido em insurreição ou rebelião" contra o governo de ocupar cargos civis ou militares em governos federal ou estadual.

Trump é alvo de uma apuração sobre sua participação no ataque ao Capitólio. O comitê da Câmara que investigou a invasão recomendou a acusação formal dele por insurreição, mas o Departamento de Justiça não enquadrou nenhum dos acusados até agora pelo crime.

Outro cenário que poderia ter deixado Trump fora do pleito presidencial seria se o Congresso tivesse aprovado seu impeachment. Nesse caso, além de perder o cargo, ele poderia ter sido declarado inelegível.

Mas ele conseguiu escapar de dois processos de impedimento.

Professor de direito constitucional da UFF (Universidade Federal Fluminense), Cassio Casagrande ressalta que a diferença entre o Brasil e os Estados Unidos deriva de culturas políticas e jurídicas distintas.

Ele lembra que, mesmo no caso de impeachment, quem tiraria os direitos de Trump ser eleito seria o Legislativo.

"Não tem na Constituição americana a hipótese de o Judiciário tornar inelegível um candidato a presidente. A ideia do sistema americano é que quem é eleito só pode ser julgado por quem é eleito", diz.

Já o Brasil, segundo a base de dados do Internacional Idea (Instituto para Democracia e Assistência Eleitoral), é apenas um de cerca de 20 países do mundo em que casos relativos à eleição presidencial são tratados na primeira instância em uma corte superior eleitoral.

A maioria das outras nações na lista está na América Latina, como Argentina e Colômbia, ou nos Bálcãs, como Bósnia e Sérvia.

Em outros países, isso tende a acontecer em tribunais não especializados em eleição, sejam federais ou estaduais.

Professora do departamento de ciência política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Marjorie Marona lembra que, no Brasil, a governança eleitoral está muito concentrada na autoridade judicial, que administra o pleito, decide e normatiza ações.

Não é necessariamente um problema, avalia. É um desenho que confere uma independência muito grande em relação ao Executivo, o que afasta interferências indevidas. Para ela, cada sistema tem vantagens e desvantagens.

"Um modelo descentralizado, por exemplo, pode ser muito útil para agilizar os processos, mas é menos eficiente para prevenir fraude", diz.

"Um modelo menos regulado pode dar mais liberdade de ação aos órgãos encarregados da governança eleitoral, mas ao mesmo tempo dá uma abertura muito grande para discricionariedade. Com isso, pode-se ter um comprometimento da credibilidade."

As diferenças entre o Brasil e outros países não escaparam às considerações do ministro do TSE Floriano de Azevedo Marques Neto no voto em que manifestou concordância com a acusação de que Bolsonaro cometeu abuso de poder.

Ele ressaltou que foi o Congresso eleito que estabeleceu as leis que cabe à Justiça Eleitoral aplicar.

"Se outros sistemas não preveem sanção de inelegibilidade nem aos condenados criminalmente, é uma questão de opção legislativa. O sistema brasileiro prevê", disse.


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