BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) - Rodeado por um pequeno pedaço de Brasília em Buenos Aires, com paredes de madeira e azulejos de Athos Bulcão, o novo embaixador Julio Bitelli diz que o Brasil precisa ter uma "conversa sincera" com a Argentina sobre o que poderá ou não ser feito para ajudar o vizinho a sair de mais uma crise econômica.

"Talvez tenha havido um nível de expectativas na Argentina um pouco acima do que seria razoável", afirma à reportagem sobre os pedidos de socorro do presidente Alberto Fernández a Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Apesar de haver vontade política de colaborar, ele afirma que os meios para isso serão baseados em critérios técnicos.

Bitelli, figura próxima ao chanceler Mauro Vieira, prevê anos intensos à frente da embaixada, onde terá como missão retomar a prioridade das relações entre os dois países tendo como pano de fundo as eleições argentinas em outubro. Mesmo se a oposição macrista ganhar, ele afirma que a proximidade deve se manter.

PERGUNTA - Quais as prioridades da sua gestão?

JULIO BITELLI - O mais importante agora é recuperar o tempo perdido nos últimos anos. É uma relação muito importante que acabou sendo deixada de lado. Agora, para os dois países, a relação bilateral voltou a ser prioritária, e a embaixada vai procurar responder a isso.

Quero também fazer uma diplomacia regional, ir às províncias e receber os estados brasileiros. Entre países fronteiriços, essa relação no nível subnacional é muito importante.

O que acontece com a relação entre Brasil e Argentina se a oposição ganhar as eleições em outubro?

J. B. - O que percebi aqui, de todos os candidatos que têm chances reais de ganhar, é que a prioridade da relação com o Brasil continuará. Ela não sofrerá, independentemente do resultado. A relação é entre Estados, as afinidades entre governantes são circunstanciais.

Isso mesmo se a ultradireita de Javier Milei ganhar?

J. B. - O que as pesquisas estão mostrando atualmente é que essa possibilidade está se tornando mais remota.

Quando Jair Bolsonaro (PL) ganhou no Brasil, não foi bem assim, as relações se distanciaram bastante no início.

Esse foi um ponto fora da curva. Quebrou uma lógica que não deveria ter sido quebrada. A gente não pode dizer que isso não vai acontecer nunca mais, mas é claramente um ponto completamente fora da curva.

O senhor disse em sabatina ao Senado que um de seus desafios é recuperar a fluidez do comércio bilateral entre os dois países. Quais os entraves para esse comércio?

J. B. - A Argentina atravessa uma crise econômica reconhecidamente complicada. Nossa expectativa é que essa crise possa ser superada, e isso terá um reflexo positivo no comércio bilateral.

Por outro lado, o Brasil foi perdendo espaço, sobretudo para a China, e é preciso encontrar formas de recuperar esse dinamismo no comércio que perdemos nos últimos tempos. Essa relação comercial é muito importante porque está baseada em produtos de maior valor agregado que qualquer outro país.

Em que pé estão as ajudas prometidas por Lula à Argentina? Um apoio via Brics está descartado?

J. B. - Nada está descartado. A gente está estudando formas de levar adiante essa ajuda, que é uma busca de financiamento para que exportadores brasileiros --e isso é preciso ficar muito claro-- possam continuar vendendo para a Argentina, que neste momento tem uma escassez de dólares que complica o comércio bilateral.

Estão sendo estudadas as fórmulas para fazer isso, que serão baseadas em critérios técnicos, jurídicos e legais sólidos. A vontade política de propiciar essa ajuda é evidente. O presidente Lula, o ministro da Fazenda [Fernando Haddad] e o chanceler [Mauro Vieira] deixaram isso muito claro.

Até agora, na prática, Fernández voltou de mãos abanando. Isso arranha de alguma forma a relação?

J. B. - Não, é importante que a gente tenha com os argentinos sempre uma conversa muito sincera do que é possível ou não fazer. Talvez tenha havido um nível de expectativas na Argentina um pouco acima do que seria razoável. O que o governo brasileiro continuará fazendo é buscar essas fórmulas, desde que elas sejam tecnicamente viáveis.

O que acontece com o Brasil se a Argentina quebrar?

J. B. - É terrível para o Brasil. Somos parceiros comerciais importantíssimos, parceiros políticos. O que a história mostra é que ao Brasil interessa uma Argentina próspera, assim como uma América do Sul próspera. Problemas que afetem a Argentina não deixarão de ter reflexos para o Brasil. Pelo nível do comércio, pela qualidade do diálogo político, pela evolução do Mercosul, que é a nossa aposta de integração regional.

A última cúpula do Mercosul evidenciou divergências entre Brasil e Argentina versus Uruguai e Paraguai.

J. B. - Não é exatamente essa divisão. O que a gente tem hoje em dia é o Uruguai com uma perspectiva diferente, objetivos que não se coadunam exatamente com o funcionamento do Mercosul, e um permanente diálogo para conciliar as coisas.

O interesse brasileiro é que o Mercosul não seja prejudicado e possa se fortalecer, até porque a gente está num momento de negociações importante na agenda externa, na negociação com a União Europeia.

O sr. também já atuou em postos nos EUA, Bolívia, Tunísia, Colômbia e Marrocos. A posição atual do Brasil sobre a Guerra da Ucrânia pode dificultar outras relações?

J. B. - Não, acho que cada vez há uma compreensão melhor em relação à posição brasileira, que é uma posição muito sólida baseada na necessidade de diálogo e no desejo de interromper as hostilidades. É natural que o Brasil tenha uma posição autônoma em relação aos problemas da agenda internacional e que não se alinhe automaticamente a esse ou àquele grupo de países.

Raio-X | Julio Glinternick Bitelli, 62

É o novo embaixador do Brasil em Buenos Aires, onde já havia atuado duas vezes, entre 2003 e 2013. Nos últimos anos, chefiou as embaixadas de Marrocos, Colômbia e Tunísia. Também foi chefe de gabinete do hoje chanceler Mauro Vieira em 2015 e 2016, no segundo mandato de Dilma Rousseff (PT). Nascido em Santo André (SP), é formado em direito pela USP e fez mestrado em Harvard, nos EUA.

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