SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Pelo segundo dia seguido, após a suspensão de sua participação no acordo que facilitava a exportação de grãos de Kiev pelo mar Negro, a Rússia bombardeou nesta quarta (19) a principal região portuária da Ucrânia, Odessa. Ao mesmo tempo, sinalizou que ainda há legalmente três meses para retomar o arranjo.

A mordida veio na forma de ataque com 63 mísseis e drones em pontos de Odessa, que o governo ucraniano disse serem especificamente ligados ao armazenamento e exportação de produtos como trigo, milho e cevada. Segundo o ministro da Agricultura, Mikola Solski, 60 mil toneladas de grãos foram perdidos no terminal de Tchornomorsk.

O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, afirmou no Telegram que "terroristas russos alvejaram de forma deliberada a infraestrutura do acordo dos grãos", repetindo o bordão de que "cada míssil é um golpe não só para a Ucrânia, mas para todas as pessoas do mundo que buscam uma vida normal e segura".

As Forças Armadas de Kiev disseram ter abatido 37 dos projeteis lançados contra a região, tradicionalmente menos defendida do que outras áreas do país em guerra, como a capital, justamente por causa do acordo que estava em vigor desde julho de 2022.

Na segunda (17), o Kremlin havia anunciado que deixaria o acerto, mediado pela ONU e pela Turquia, porque os termos do acordo paralelo que facilitaria a sua exportação de grãos e fertilizantes não teriam sido respeitados integralmente. O secretário-geral da ONU, o português António Guterres, então declarou esse instrumento nulo.

Sem a Rússia no acordo, os comboios de navios a serviço dos exportadores ucranianos perdem a garantia de que não serão atacados no corredor marítimo até o estreito de Bósforo, que liga o mar Negro ao Mediterrâneo, na Turquia. Zelenski chegou a dizer que poderia seguir a exportação com proteção militar turca, mas isso colocaria forças navais da Otan (aliança militar ocidental) e da Rússia em posição de eventual confronto direto.

Moscou já havia dito que poderia retomar o acordo de grãos caso suas demandas fossem satisfeitas, mas mudou o tom nesta quarta. A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores disse que as regras vigentes do acordo paralelo, sobre produtos russos, obrigam um aviso prévio de três meses em caso de cancelamento por parte da ONU.

"O memorando Rússia-ONU diz que o acordo estará valendo por três anos e, em caso de alguma das partes terminá-lo, deve dar uma aviso prévio de três meses", afirmou Zakharova à Rádio Sputnik, de Moscou.

Parece uma obviedade, mas é uma sinalização política dupla. Com os mísseis, Moscou lembra que pode dificultar ou impedir a exportação. Com a fala diplomática, dá três meses para tentar renegociar os termos de sua volta ao acordo de grãos. Não escapará da usual acusação de que está chantageando o Ocidente, que teme uma crise inflacionária renovada de alimentos com o fim do acordo.

Zakharova ainda cutucou Guterres. "A ONU ainda tem três meses para conseguir resultados concretos. Assim, as pessoas não deveriam correr aos microfones do secretariado da ONU, mas usar esses três meses. Se houver resultados, nós vamos voltar à discussão da questão [do acordo dos grãos]", afirmou.

A Ucrânia respondia antes do conflito por 14% do mercado mundial de milho e 9%, do de trigo ?do qual a Rússia é a líder, com 19%. Os preços de grão subiram em média, segundo a ONU, 20% com a guerra, caindo para os patamares pré-invasão a partir do acordo. Agora, mercados futuros registram altas seguidas com a indefinição.

RÚSSIA AVANÇA COM NOVA OFENSIVA

Nos campos de batalha, a Rússia anunciou avanços importantes no nordeste da Ucrânia, na ação surpresa que lançou enquanto Kiev segue com dificuldades com sua contraofensiva lançada no mês passado. Segundo o Ministério da Defesa em Moscou, o centro ferroviário de Movtchanove foi tomado nesta quarta.

A estação fica bem ao norte da importante cidade de Kupiansk, na região de Kharkiv, que havia sido retomada quase integralmente pela Ucrânia na bem-sucedida contraofensiva do fim do ano passado. Se confirmada, a queda pode significar um golpe duro para as linhas de suprimento para forças ucranianas ao sul, chegando à região de Donetsk.

Das quatro áreas anexadas ilegalmente por Vladimir Putin no ano passado, Donetsk é aquela em que Kiev retém mais controle, cerca de 45% do território. O movimento em pinça que parece se desenhar dessa nova ofensiva russa sugere o isolamento de suas forças lá, embora seja cedo para saber se essa é a intenção de Moscou.

Também é incerto o tamanho das forças envolvidas. A Ucrânia anunciou que seria o maior contingente russo desde a invasão, 100 mil soldados e 900 tanques, mas até aqui não há confirmação disso. Já a Rússia apenas confirma que está em ação ofensiva.

Kiev admite uma "situação difícil", segundo suas Forças Armadas, mas diz que os combates intensos prosseguem. O que é certo é que a iniciativa principal, nesse momento do conflito, está pendendo para o lado russo, já que a contraofensiva de Zelenski falhou até aqui em romper as linhas defensivas russas.

Há, contudo, ganhos incrementais dos ucranianos e ações como o ataque à ponte que liga a Crimeia anexada em 2014 à Rússia, de grande simbolismo. Ocorrida na segunda, a ação com drone marítimo precedeu o anúncio russo sobre o acordo de grãos, que de todo modo já havia sido telegrafado por Putin.

No Ocidente, que armou e treinou os militares ucranianos para a ação, a ordem parece ser a de minimizar as dificuldades. Na terça, o principal general americano, Mark Milley, disse que "a contraofensiva está longe de ser um fracasso", mas que será "longa e sangrenta".


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