BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Com a permanência no Brasil confirmada, o embaixador da Argentina, Daniel Scioli, tentará reeditar agora, durante o mandato de Javier Milei, o papel de interlocução que desempenhou durante os governos de Jair Bolsonaro (PL) e Alberto Fernández. Na ocasião, ele atuou para estabelecer canais de comunicação entre duas administrações ideologicamente opostas.

Scioli planeja utilizar a experiência adquirida nos anos anteriores para construir a "melhor relação possível" entre Brasil e Argentina, que voltarão a se posicionar em lados inversos do espectro político com a posse de Milei, no próximo dia 10.

"No passado, o presidente Bolsonaro e o presidente Fernández, com sua diferença ideológica, [nós] trabalhamos igualmente. O Brasil voltou a ser o principal parceiro comercial da Argentina, com recorde de exportação argentina e muitos investimentos. Todas as controvérsias sanitárias e fitossanitárias foram superadas", disse o embaixador.

Na recepção de lançamento do seu livro "A nova era da diplomacia", na noite de terça-feira (29) na embaixada da Argentina, Scioli disse que chegou a pensar que o evento marcaria sua despedida do cargo no Brasil.

Segundo o peronista, mandatos de embaixadores políticos ?como se autodenomina? costumam chegar ao fim quando há mudança de govern. Era essa a sua expectativa.

"Milei confirmou minha continuidade a partir do trabalho que temos realizado, em um sinal muito claro a todo o universo de empresários e à agenda bilateral que temos. Vamos continuar esse trabalho", afirmou.

Em uma conversa com a futura chanceler argentina, Diana Mondino, o embaixador contou ter discutido as expectativas do próximo governo quanto às relações com o Brasil e ouviu que o espírito seria fortalecer, dar dinamismo, crescimento e prosperidade para os países.

O plano de Scioli tem como base repetir a fórmula dos anos em que fez a ponte diplomática entre dois governos também politicamente antagônicos de Bolsonaro e Fernández.

Bolsonaro apoiou Mauricio Macri na campanha eleitoral argentina, em 2019, e trocou farpas com Fernández candidato e depois eleito. Ele chegou a dizer que haveria migração em massa para o Brasil de argentinos, o que não se concretizou.

O momento de maior tensão entre os países ocorreu na pandemia, como mencionou o diplomata. Bolsonaro criticou o lockdown no vizinho e inaugurou um novo capítulo de brigas públicas entre os dois líderes.

Scioli, que já foi vice-presidente de Néstor Kirchner (1950-2010), está em Brasília desde 2020, quando foi indicado por Fernández ao cargo. Ele chegou a se lançar pré-candidato à Casa Rosada neste ano, mas abriu mão para apoiar Sergio Massa, derrotado no pleito pelo ultraliberal.

Agora, será o representante do governo Milei no Brasil. A decisão levou Fernández a criticar Scioli, dizendo que não entendia como poderia representar "duas Argentinas distintas" do mesmo modo.

Ao mesmo tempo, a medida foi interpretada por diplomatas brasileiros como um novo aceno ao governo petista, para minimizar o mal-estar desde que Milei chamou Lula de "comunista" e "corrupto".

Na visão de autoridades brasileiras e argentinas, Milei tem feito uma série de gestos positivos em um curto período de tempo desde que ganhou a eleição.

"A reunião dos dois chanceleres [Mondino e Mauro Vieira] no domingo passado [26] foi um sinal muito bom, acompanhado de uma carta pessoal do presidente Milei ao presidente Lula com definições muito claras [sobre a relação dos países]", afirmou Scioli.

Ele disse que, embora não haja previsão para encontro entre Lula e Milei ou mesmo uma conversa telefônica entre os líderes, trabalha para isso. "A construção é progressiva como o amor, tem que ir devagarinho", brincou.

O caminho do pragmatismo do embaixador da Argentina será pelas relações comerciais, para "ampliar o progresso dos países", como disse Scioli. Ele cita os setores energético, alimentício e de mineração como exemplos, além do turismo.

O embaixador contou ainda que tentou transmitir tranquilidade a empresários brasileiros que entraram em contato com ele e que podem participar tanto da posse de Milei como de um eventual encontro com o presidente argentino eleito.

Dentre eles, citou Rubens Ometto, da Cosan, e João Camargo, do grupo Esfera Brasil.

No passado, os empresários participaram de encontros com Bolsonaro, que também se prepara para ir à posse de Milei na Argentina. Ele organiza uma caravana de parlamentares e governadores de direita para acompanhar a cerimônia de inauguração do mandato do ultraliberal.

O presidente Lula, por sua vez, não deve ir a Buenos Aires para o evento. A carta de Milei entregue ao governo brasileiro por Mondino convidou o petista para a posse e falou em "trabalho frutífero" e "construção de laços".

Scioli também participou do encontro no Itamaraty. Para reforçar o convite, ele compareceu ainda duas vezes ao Palácio do Planalto, onde esteve com o assessor especial para assuntos internacionais, Celso Amorim, e com o ministro Paulo Pimenta (Comunicação Social).

A poucos dias da cerimônia de posse de Milei, haverá a cúpula do Mercosul no Rio de Janeiro. No evento, a Argentina será representada apenas por Fernández, como confirmou o embaixador.

O evento marcará a passagem da presidência do bloco sul-americano das mãos do Brasil para o Paraguai. O Mercosul é um dos pontos considerados centrais na relação dos dois países.

O governo brasileiro tem trabalhado junto aos sócios sul-americanos e aos europeus para conseguir concluir as negociações do acordo entre União Europeia e Mercosul até a cúpula.

Com a vitória de Milei, havia um temor de que pudesse haver um retrocesso nas negociações. Durante a campanha eleitoral, o ultraliberal chegou a dizer que a Argentina deixaria o Mercosul.

O discurso, contudo, vem mudando drasticamente desde o resultado das urnas. Na quarta-feira (29), Mondino disse em entrevista ao jornal DF Sud que o presidente eleito pediu a Fernández para fechar o acordo.

A ordem, segundo ela, é de pragmatismo nas relações exteriores, na contramão do que Milei vinha dizendo na campanha.

Sobre o Mercosul, Scioli pede que se espere que o presidente eleito se sente à cadeira para então, com sua chanceler, tomar qualquer decisão. Mas resume: "O espírito do novo governo da Argentina é abrir, abrir, ampliar o Mercosul e fazer novos acordos".


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