BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - A cerimônia de posse do novo presidente da Argentina, o ultraliberal Javier Milei, vai marcar a primeira vez em quatro décadas que o Brasil não será representado por seu presidente ou por seu vice.

Trata-se de uma situação inédita após a redemocratização nos dois países, processo que se deu nos anos 1980. A última vez que um presidente brasileiro ou seu vice não foi a Buenos Aires para celebrar o início de um governo eleito no país vizinho foi na posse de Raúl Alfonsín, em 1983.

Javier Milei toma posse neste domingo (10), em meio a um clima de turbulência e desconfiança do lado brasileiro. Isso porque o então candidato atacou em seus discursos acordos e instituições que são caros ao Brasil, como o Mercosul, além de ter adotado uma retórica hostil contra o presidente Lula (PT).

Milei disse na campanha que não negociaria com o líder brasileiro e o chamou de "corrupto" e "comunista".

Após a eleição, o argentino baixou o tom. O maior gesto de conciliação aconteceu quando Milei enviou a futura chanceler argentina, Diana Mondino, a Brasília para entregar um convite para que o brasileiro comparecesse à posse.

Mesmo com o gesto, Lula decidiu que o representante brasileiro seria o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira. A escolha se deu após a avaliação de que o clima ainda será hostil ao brasileiro, além de colocar num mesmo ambiente o petista e o seu antecessor e rival, Jair Bolsonaro (PL) -que foi convidado por Milei para a cerimônia e já está em Buenos Aires.

A decisão de enviar Mauro Vieira também visa enviar um recado ao novo governo, de que uma relação pragmática é possível, mas deixando claro o desconforto do Brasil com a situação. Em termos diplomáticos, a presença de um chefe de Estado ou mesmo de seu vice em cerimônias de posse de um país estrangeiro dá uma sinalização da importância para a relação entre as nações.

Chanceleres também representam deferência, embora menos que os dois primeiros membros da linha sucessória de um país. Quando não costuma haver grande proximidade entre os governos, costuma-se designar o embaixador do país para acompanhara as cerimônias. Essa situação chegou a ser cogitada por alguns auxiliares de Lula.

O então presidente Bolsonaro mostrou toda a sua insatisfação com a eleição de Alberto Fernández, em 2019, após o peronista ter visitado Lula na prisão em Curitiba. Bolsonaro não cumprimentou o presidente eleito e deixou claro que não compareceria à posse de Fernández.

"Não pretendo parabenizá-lo. Agora não vamos nos indispor. Vamos esperar o tempo para ver qual a posição real dele na política. Porque ele vai assumir, vai tomar pé do que está acontecendo, e vamos ver qual linha ele vai adotar", afirmou à época.

A definição da delegação brasileira na ocasião passou por várias idas e vindas. Bolsonaro chegou a afirmar que não enviaria ninguém para a posse do argentino, mas depois recuou. Disse que seria inicialmente o então ministro Osmar Terra (Cidadania). Depois optou por escalar o vice Hamilton Mourão.

Todos os presidentes anteriores do período democrático brasileiro compareceram à posse dos eleitos na Argentina. Mesmo com as diferença ideológicas, Dilma Rousseff deixou claro que pretendia comparecer à cerimônia do conservador Mauricio Macri, e sua ida só esteve ameaçada por questões de cortes orçamentários --que a fez cancelar outras viagens internacionais.

Dilma participou de quase toda a cerimônia, mas perdeu o juramento de posse de Macri, pois seu avião ficou retido no ar e ela chegou atrasada.

Lula e Dilma, quando presidentes, foram às duas posses de Cristina Kirchner; Lula foi à de Néstor Kirchner; Fernando Henrique foi a Buenos Aires para as cerimônias de Fernando de la Rúa e Carlos Menem; e José Sarney foi à posse de Menem.

A única exceção nesse período aconteceu durante a posse de Eduardo Duhalde, que não havia sido eleito por voto popular em 2002. Após turbulência econômica e política, ele foi escolhido pelo Legislativo do país e tomou posse na Casa Rosada na tarde do mesmo dia.

Especialistas em relações internacionais apontam que a decisão do governo brasileiro não é uma tomada de posição unilateral em relação à Argentina, mas uma consequência das falas e posições do próprio Milei.

"A mensagem é clara: o Brasil continua disposto a manter uma boa relação de Estado, no mais alto nível administrativo, com a Argentina", afirma o professor Antônio Jorge Ramalho, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

Ele acrescenta que Milei está deixando claro que não quer qualquer aproximação política com Lula, que, por sua vez, estaria respeitando a posição do argentino.

"Ao mesmo tempo, assim como a futura chanceler argentina se prontificou a trabalhar pela boa relação bilateral, o chanceler brasileiro retribuirá o gesto, profissionalmente. A eles caberá administrar a complexa relação bilateral, enquanto alguns políticos criam crises e narrativas para ocupar espaços na mídia", completou.

Na mesma linha, Guilherme Casarões, professor de política internacional da FGV (Fundação Getúlio Vargas), afirma que a decisão de enviar o chanceler carrega um simbolismo bem importante. Lembra que os governos brasileiros sempre respeitaram os dirigentes eleitos argentinos, mesmo quando havia diferenças ideológicas.

"Não deixa de ser uma questão simbólica, que não parte, na realidade, do governo Lula, que sempre foi muito aberto para relações com a Argentina. Então, mesmo quando se trata de oposição, existe uma diferença, um respeito mútuo, que torna essa participação de presidentes brasileiros nas cerimônias argentinas e vice-versa muito importante e muito comum. Agora, nesse caso em particular, essa desavença não partiu do Brasil. Ela foi fruto de uma retórica de campanha do Javier Milei, bastante inflamada contra o Brasil, contra o governo Lula", completou.


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