BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) - Na emergência de um hospital particular em Buenos Aires, o enfermeiro Matías Sánchez, 38, faz um curativo na testa de uma paciente, enquanto responde quanto deve custar a sutura sem plano de saúde. "Bom, ainda é pagável", diz ela.

"Por enquanto", rebate ele.

Sem contar com as ajudas anunciadas aos mais pobres pelo governo de Javier Milei, a classe média que ainda consome saúde e educação privadas na Argentina tem sido uma das principais afetadas pela explosão de preços que o país vive desde dezembro.

A inflação, que já vinha alta desde 2022 e durante as eleições no ano passado, disparou ainda mais depois que o novo presidente desvalorizou a moeda local e acabou com congelamentos impostos pela gestão peronista anterior, admitindo que nos primeiros meses as medidas exigiriam o que chamou de "sacrifícios dolorosos" da população.

Nesse estrato da sociedade, isso tem significado comprar menos ou piores produtos no mercado, deixar o carro na garagem, cancelar o plano de saúde ou até mudar os filhos de escola, cujas mensalidades devem subir de 30% a 50% neste ano letivo. Por isso, agora, o presidente ultraliberal começa a falar em auxílios também para esse grupo.

"Vamos incorporar um mecanismo de assistência à classe média para que as crianças não percam o colégio. Se a renda cai e você tem que mudar as crianças de escola é traumático para pais e filhos", disse Milei a uma rádio local na quinta-feira (15), às vésperas da volta às aulas em março.

O anúncio acontece depois que ele eliminou subsídios de transportes e energia e praticamente zerou os repasses não obrigatórios às províncias, seguindo seu grande objetivo de reduzir gastos, reequilibrar as contas públicas e liberalizar a economia ?e travando uma guerra com governadores no caminho.

"Casta a la vista, baby", publicou Milei no último dia 8, numa montagem de si próprio que evoca a célebre frase do filme "Exterminador do Futuro" contra governadores, deputados e sindicalistas. Depois de um período de alianças, ele os acusa de terem travado seu pacote de reformas liberais apelidado de "lei ônibus" no Congresso.

Os governadores chegaram a ameaçar deixar o governo federal sem energia ou acesso aos portos se Javier Milei não voltar atrás. "Só falta o presidente bater no Chapolin Colorado, aí não sobra mais ninguém na Argentina", disse o governador de Córdoba, Martín Llaryora, um dos que começaram apoiando o governo.

A ajuda escolar à classe média, segundo Milei, virá em forma de vouchers para o pagamento de mensalidades e materiais escolares, algo que o presidente prometeu durante a campanha. Mas ainda não se sabe como eles serão implementados, quais os valores ou quantas pessoas os receberão. Nem se serão suficientes.

"Usar serviços privados é um dos principais critérios de construção da classe média na Argentina, enquanto a classe baixa usa serviços públicos. A grande pergunta é: ela vai conseguir sustentar isso?", questiona Julio Birdman, cientista político e professor da UBA (Universidade de Buenos Aires).

Ele também destaca que as diferenças entre a classe média e média alta no país, que hoje não são tão distantes, devem se ampliar. "Elas são próximas culturalmente, consomem de maneira parecida e usam serviços privados. Agora, pode ser que a situação fique mais parecida à do Brasil ou do Chile", afirma.

No primeiro trimestre de 2023, a pirâmide salarial da Argentina tinha 5% da população na classe alta, 45% nas classes médias (alta ou baixa) e outros 50% nas classes baixas, segundo os últimos dados divulgados pela consultoria W. Os níveis de pobreza, porém, subiram desde então.

Por enquanto, o governo Milei tem concentrado as ajudas nesse último grupo, que não consegue pagar os preços nos mercados e já chega a pular refeições, limitando-se a ensopados ou massas.

Depois de ampliar os valores do auxílio por filho e do cartão alimentar, o presidente anunciou, na semana passada, um aumento de 311% na ajuda escolar, de 17 mil para 70 mil pesos (R$ 70 para R$ 300 na cotação paralela). Isso ao mesmo tempo em que revisa quem recebe os benefícios e ameaça retirá-los de quem bloquear ruas em protestos.

"Milei é como um [Jair] Bolsonaro com os votos de Lula, ele tem os votos da população mais pobre do país, também por isso aumenta os subsídios", diz o professor Birdman, analisando que as medidas "revolucionárias" do presidente ultraliberal estão gerando um novo sistema de ganhadores e perdedores no país.

Entre o último grupo, além da classe média, estão os trabalhadores informais, que têm mais dificuldade de ampliar salários sem o respaldo de sindicatos. A faxineira Claudia Garcia, 43, por exemplo, não aumenta o valor da hora de trabalho desde dezembro, mesmo com a explosão nos preços no período: "Senão o patrão vai pensar que é abuso", afirma ela.

Entre os ganhadores, por outro lado, estariam o campo e os exportadores, que podem comercializar seus produtos com cotação de dólar mais favorável; os empresários, empreendedores e vendedores, que atuam com menos restrições do Estado; e também os trabalhadores dos setores mais beneficiados.

Milei faz suas primeiras mudanças radicais de austeridade apostando no apoio que teve nas urnas de 56% da população, a quem nunca mentiu sobre as consequências. A grande questão é quanto tempo a sociedade argentina vai aguentar. "Os 26% que só votaram nele no segundo turno terão menos paciência", pondera Birdman.

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